Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou

Evangelho do Domingo VI da Páscoa – João 14,23-29
“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou”
Ruan da Silveira Isnardi

Jesus se despede de seus discípulos e discipulas com palavras que consolam e, ao mesmo tempo, confrontam: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou. Não a dou como o mundo a dá”. Essa distinção é crucial. A paz de Jesus não é a da acomodação ou do silêncio imposto. É uma paz inquieta, que incomoda os poderosos porque se compromete com a justiça e a dignidade de todas as pessoas, especialmente daquelas marginalizadas.

No Brasil, um exemplo pungente da “paz que o mundo dá” pode ser encontrado no período que sucedeu a abolição da escravidão em 1888. No ano seguinte, a república foi proclamada. Mas o Hino da Proclamação da República dizia com altivez: “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país.” A historiadora Lilia Schwarcz chama atenção para a ironia brutal dessas palavras. Ao invés de reconhecer a dor, o sofrimento e a luta do povo negro escravizado, a elite brasileira preferiu apagar o passado, fingir que não havia ferida. Essa é a paz do mundo: uma paz que silencia a violência ao invés de enfrentá-la.

Mais de um século depois, a Constituição de 1988 foi a primeira a garantir, de forma explicita, direitos iguais às pessoas negras, inclusive à crianças no acesso à educação. Até então, a segregação ainda se manifestava de formas explícitas. Cem anos após o fim formal da escravidão, o povo negro ainda vivia (e vive) aprisionado nas margens da cidade, da economia, dos direitos, da dignidade, a paz que o mundo ofereceu só perpetuou a dor e o sofrimento, sem reparar os erros de antes.

Jesus, no seu tempo, também enfrentou os poderes políticos e religiosos que prometiam uma “paz” baseada na ordem, no controle, no silêncio das pessoas oprimidas. Por anunciar uma paz que inclui, que liberta, que denuncia os abusos e restitui a dignidade, foi perseguido e morto.

A paz de Cristo não é calmaria, é tempestade que limpa. É justiça que rompe com privilégios. É reconciliação que exige reparação. E essa paz só pode ser vivida quando deixamos de apagar a história dos crucificados e crucificadas de ontem e de hoje, e passamos a caminhar junto delas.

No Brasil de hoje, marcado ainda pela desigualdade, pelo racismo estrutural e pela violência contra as mulheres e pessoas empobrecidas, a paz de Cristo nos chama a uma postura firme: não aceitar a falsa paz que esconde as injustiças, mas lutar por uma sociedade onde todas as vidas importam e onde a memória das dores não seja apagada, mas transformada em compromisso libertador.

Essa é a paz que o mundo não entende. Mas é a única que liberta.

Carrinho de compras
Rolar para cima