Por Marcelo Barros e Gilvander Moreira
Neste ano (C), o lecionário litúrgico nos faz escutar João 2,1-11, narrativa da festa de casamento em Caná, na Galileia, quando Jesus salvou a alegria da festa e sinalizou o casamento de Deus com a humanidade. Conforme antiga tradição cristã, esse evangelho está ligado com a festa da Epifania, celebrada há alguns dias. O sinal das bodas de Caná sempre foi considerado como um dos sinais da manifestação (epifania/diafania) do Cristo ao mundo.
Em muitas tradições espirituais, a espiritualidade é vista como mergulho no divino. Os pais da Igreja oriental falavam em divinização do ser humano. Por razões culturais e históricas, a Bíblia insiste na alteridade de Deus. Isso significa que Deus não é apenas uma partícula do universo ou uma dimensão de nós mesmos. Não nega que Deus se manifesta no universo e em nós. Sublinha que no Mistério Divino há uma alteridade que não se reduz a nós ou à natureza. Todos os seres vivos e toda a natureza são sagrados, Deus está na imanência, mas transcende a criação. Essa visão bíblica expressa a intimidade divina em termos de aliança ou casamento com Deus e com a humanidade.
No Evangelho chamado de João, melhor título seria Evangelho do/a discípulo/a amado/a, Jesus se apresenta e revela sua missão através de sete sinais proféticos. O primeiro sinal foi transformar a água em vinho em uma festa de casamento. Sinal é diferente de milagre. Sinal aponta uma realidade mais profunda que transcende o sinal em si mesmo. Trata-se de um relato simbólico e não de um ato mágico. Tem certa coloração macroecumênica (existem relatos semelhantes no culto oriental do deus Dionísio) e um forte conteúdo social e humano.
Neste relato simbólico, o Evangelho mostra Jesus fazendo da festa de núpcias de um casal pobre da Galileia o sinal da antecipação da sua “hora”, ou seja, da sua missão messiânica: doação de sua vida por amor à humanidade, testemunhando um jeito libertador de viver, conviver e lutar pela construção do reino divino, inclui uma sociedade com relações sociais de justiça, paz e amor.
Para as culturas latino-americanas tão ligadas à alegria do convívio, é bom ver que Jesus começa seus sinais ao participar de uma festa de casamento e cuidar de que haja vinho e de excelente qualidade. Por que falta vinho na festa em CANÁ? (Cf. Jo 2,4) Por causa do vinho muito sangue foi derramado naquela região (cf. Jz 9,12-13; I Sam 8,14; I Rs 21). A realidade é de escassez, de carência. A solução aparece a partir da intervenção de uma Mulher, pelo trabalho dos servos (pequenos e insignificantes) e a solidariedade de Jesus. É na mão dos serventes que a água se torna vinho. Depois da festa em Caná, cidade da periferia da Palestina, Jesus vai à festa da Páscoa em Jerusalém e lá ele “estraga” a festa (cf. Jo 2,13-22 – expulsa os vendilhões do Templo. Este episódio, segundo os sinópticos, é o que precipita a decisão de assassinar Jesus. Mas já segundo Jo 11,45-54 o que precipita a decisão de sacrificar Jesus foi a ressurreição de Lázaro, Jesus se revelando como fonte de vida. Quem gera vida deve ser assassinado, não pode ser tolerado, concluem os adversários “judeus”). Seis talhas de pedra significam as seis festas judaicas e recordam a Lei inscrita em “pedras”.
Na Bíblia casamento significa a realização do íntegro relacionamento entre Deus e o povo, as núpcias definitivas. Desde Oséias (Os 2,21-22). Jeremias também aponta para a esperança de um casamento íntegro (Jr 31,1-4) com esta novidade: será a mulher que seduzirá o marido (Jr 31,17-22). O casamento em Caná quer mostrar que Jesus é o verdadeiro noivo que veio para o tão esperado casamento, trazendo um vinho gostoso e abundante.
Há quem estranhe que o texto fale de uma festa de casamento e não diga nada dos esposos. O fato de não nomeá-los é como se o noivo e a noiva pudessem ser qualquer um de nós. É mais um dado para compreendermos que esse relato é simbólico. Não deixa de ser significativo comparar a aliança de Deus conosco com uma festa de casamento.
No tempo de Jesus, as festas de casamento duravam oito dias. O evangelho conta que nesse casamento na aldeia de Caná da Galileia, a mãe de Jesus estava presente e Jesus também foi com seus discípulos e suas discípulas. O evangelho chama a atenção para o fato de que, no meio da festa faltou vinho. Ainda mais do que atualmente, no mundo de Jesus, o vinho é elemento fundamental da festa. Faltar vinho era como dizer que a festa fracassou.
Muitas vezes, esse texto é comentado em uma perspectiva antijudaica. Conforme tal leitura, a religião judaica estaria superada, como, nesse relato do evangelho, as talhas destinadas aos ritos de purificação estavam vazios. No texto grego do quarto evangelho, há um jogo de palavras entre os termos mordomo (arquitriclínio) e sacerdote (arquihereus). De fato, afirmar que o mordomo não sabia de onde veio o vinho melhor é uma forma de dizer que a religião do templo e dos sacrifícios não era mais capaz de proporcionar a aliança da humanidade com Deus. A religião ritualista e fundamentalista não consegue transformar a vida em uma festa com alegria para todos e todas.
Apesar de que tal exegese se pode explicar historicamente pelo momento de confronto entre as primeiras comunidades cristãs com as comunidades do Judaísmo rabínico rigorista, o que sobreviveu à invasão do império Romano na chamada Guerra Judaica. Essa interpretação não pode nos levar à conclusão de que o Judaísmo seria essa religião vazia e ultrapassada. Tal postura conteria forte arrogância e é contrária ao modo de ser de Jesus e à sua proposta. No relato de Caná, se existe oposição, só pode ser entre a religião institucional – fundamentalista, ritualista e moralista – (qualquer religião), simbolizada nos ritos de purificação (as talhas vazias) e uma espiritualidade de intimidade com Deus (simbolizada no casamento). Essa nos vem de graça como o vinho novo dado por Jesus, espiritualidade comunitária e enraizada na vida, não presa a uma instituição.
A boa noticia desse Evangelho é que, na nossa vida de cada dia, na realidade de nossas pobrezas (social ou cultural), Jesus se mostra presente e nos revela, em sua pessoa e em cada ser humano, a glória de Deus, isso é, o sinal da presença divina. Em Caná, todo mundo bebe o vinho melhor e se alegra. Só os discípulos (os serventes) sabem o que Jesus tinha feito. O trabalho dos serventes é imprescindível para que a vida seja uma festa. Jesus não se impõe, nem chama a atenção sobre si. O importante é ver os esposos felizes e os/as convidados/as satisfeitos/as. No Brasil, as comunidades eclesiais de base cantam: “Vinho melhor foi guardado para a festa que virá”. É a festa da justiça e da libertação de toda a humanidade. Jo 2,1-11 não referenda festa luxuosa, festa de ricos, como se fosse a festa abençoada por Deus. É a partir do trabalho dos serventes com a água que se tem que se produz festa linda para todos e todas. A festa aqui é metáfora da vida.
Conforme esse evangelho, a fé não pode ser algo triste e pesado. Atualmente há líderes religiosos que incutem ideia de pecado em muitas realidades humanas e ficam impondo complexo de culpa nas pessoas. Alardeiam o tempo todo: “Isso é pacado!” O libertador é vermos a dimensão sagrada no humano e em tudo o que é humano e natural. A nosso fé deve ser alegre e afetuosa como uma festa de casamento. É claro que, às vezes, a fé parece mais um tempo de luta do que de festa. Assumimos a luta como ensaio que antecipa as condições objetivas, para que a vida se torne festa como a hora de Deus em nossa vida.
Numa Comunidade Eclesial de Base (CEB) alguém comentou: “Jesus transformou muito vinho. Foram 600 litros. Será que beberam tudo?” Uma mulher respondeu repentinamente: “O vinho novo é Jesus com seu projeto e nós continuamos tomando até hoje. É quem sustenta nossas vidas.” Na preparação desta festa podemos crer que somos divinizados, isso é, cheios do amor e da intimidade do Espírito Divino, que nos chama a viver o seu amor universal. É o que Gonzaguinha expressa na música “O que é, o que é”, de 1982