Todos e todas nós convivemos com o costume de ir ao cemitério nesses dias do início de novembro e colocar flores nos túmulos das pessoas queridas. Fazer memória das pessoas falecidas é costume nas mais diferentes religiões e espiritualidades. Quem já visitou o México nesses dias sabe que nesses dias em todas as cidades e lugarejos ocorre uma verdadeira festa com procissões, pessoas mascaradas, comidas e bebidas. Em cada casa, se arma um altar com fotografias das pessoas que partiram e ali se colocam frutas, pamonhas e outras iguarias, como doces para as crianças.
Alguém imbuído de mentalidade instrumental moderna pode considerar esses costumes primitivos e ingênuos ou sem sentido, já que os mortos estão mortos e esses gestos e ritos não lhes serão úteis. Ao contrário, as espiritualidades dos povos originários e das comunidades afrodescendentes acreditam que, embora de outra forma, as pessoas que partiram continuam vivas e presentes em nossas vidas. Assim como as plantas têm raízes fincadas na terra e que, embora não sejam vistas, são as raízes que mantêm as plantas sadias, assim somos sustentadas e sustentados pelo apoio e comunhão com as pessoas de nossa ancestralidade.
Na Amazônia, conforme o Xamã Davi Kopenawa, o povo Yanomami acredita que seus antepassados vivem nas árvores da floresta e nos animais e, à noite, os espíritos (yapiris) vêm dançar para restabelecer o equilíbrio da vida. No Mato Grosso, o povo Pareci lamenta que os garimpeiros, ao poluir o rio com mercúrio não somente matam a vida no rio e prejudica a natureza, mas também impedem que os espíritos ancestrais continuem a morar nas águas dos rios, através das quais se comunicam com a comunidade das pessoas vivas.
A vida é um mistério de comunhão. Cada religião ou caminho espiritual descreve com suas palavras ou de acordo com sua cultura. É preciso irmos além das formas simbólicas e acolhermos o que está por trás das figuras e dos mitos. No Cristianismo, todas as Igrejas oram no Credo que lhes é comum: “Cremos na comunhão dos santos”. Isso significa que há uma comunidade entre as pessoas que partiram e as que seguem na luta da vida. No dia 2 de novembro, celebramos essa comunhão.
A biologia atual nos ensina que o amor, além de ser sentimento e opção de vida é também fenômeno biológico. Conforme o biólogo chileno Humberto Maturana, é o amor, a emoção, que fundamenta a socialização, uma vez que permite os encontros recorrentes entre os indivíduos. E o próprio fenômeno da vida se dá quando as células se relacionam e a vida se recria (é o fenômeno da autopoiesis). A própria vida só se explica pelas relações de amor. Convivendo com os empobrecidos e em profunda harmonia com a natureza, Francisco de Assis compreendeu que “só o amor constrói”. A biologia confirma que a própria vida é um jogo de relações que se autoconstrói e que se transforma para se propagar. Com pensadores de todo o mundo, Leonardo Boff afirma a espiritualidade como o desenvolvimento dessa abertura interior ao amor e como processo de amadurecimento interior e de plena realização humana. Isso faz da espiritualidade uma dimensão antropológica universal e que se manifesta nas diversas religiões, mas também para além delas.
Na Igreja cristã, a comemoração de 2 de novembro como dia de memória e comunhão especial com todas as pessoas falecidas surgiu a partir do costume das primeiras gerações cristãs de celebrar a fé junto ao túmulo dos irmãos e irmãs mártires, ou seja, que tinham dado a vida como testemunhas do projeto divino no mundo.
Nesse momento em que o Brasil atravessa um tempo tão complexo no ponto de vista político e grande parte de nossas Igrejas ignora a profecia da justiça e da paz do reino de Deus, precisamos lembrar que, frequentemente, Dom Pedro Casaldáliga nos advertia: “A Igreja que deixa de celebrar os seus filhos e filhas mártires acaba esquecendo a memória do seu mártir maior: Jesus Cristo”. Celebremos então, nesses dias, a memória dos nossos irmãos e irmãs falecidos para sermos cada vez mais fieis e firmes na defesa da Vida e da comunhão de todos os seres vivos.
Texto atribuído a Santo Agostinho (século IV):
O amor não desaparece jamais
A morte não é nada.
Eu só passei para o outro lado do Caminho.
Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês, continuarei sendo.
Podem me dar o nome que sempre me deram
e falem comigo como sempre fizeram.
Vocês continuam vivendo no mundo das criaturas.
Agora, eu vivo no mundo do Criador.
Não utilizem tom solene ou triste,
continuem a rir daquilo que nos fazia rir juntos.
Rezem por mim.
A vida significa tudo o que sempre significou.
O fio não foi cortado.
Por que estaria eu fora dos seus pensamentos
agora que estou apenas fora de suas vistas?
Não estou longe, apenas do outro lado do Caminho”.
(Agostinho de Hipona)
Autor: Irmão Marcelo Barros