Fazendo ecoar o dia dedicado à memória de São Marcos, 25 de abril, partilhamos a primeira parte do livro “O Evangelho de Marcos – Um roteiro de viagem tendo Jesus como guia”, de autoria do irmão Carlos Mesters e de Francisco Orofino. Adquira a obra completa através do link: O Evangelho de Marcos – CEBI
Uma chave de leitura para o Evangelho de Marcos
Um evangelho é como a pintura que alguém faz de seu amigo. O evangelista expressa a experiência libertadora que ele teve do amigo Jesus. Mas ele escreve pensando nas comunidades e seus problemas. Escreve para ajudá-las e dar-lhes a boa-notícia de Deus que Jesus nos trouxe.
Temos quatro evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João. Havia bem mais. Pois muita gente tentou reunir tudo que se contava nas comunidades sobre Jesus (cf. Lc 1,1-3). Mas de todos eles só quatro foram conservados no Novo Testamento. Um desses quatro é Marcos. Qual a boa-notícia que Marcos quer comunicar? Quais os problemas das comunidades que ele quer iluminar?
Os problemas das comunidades que Marcos quer iluminar
Jesus morreu em torno do ano 33. Marcos escreve quarenta anos depois em torno do ano 70. As comunidades já viviam espalhadas pelo Império Romano. Alguns acham que ele escreveu para as comunidades da Itália. Outros dizem que foi para as da Síria. Difícil saber o certo. De qualquer maneira, uma coisa é certa: não faltavam problemas! Eis alguns:
1 Perseguição dos cristãos por parte do Império Romano
A ameaça de perseguição era constante. Havia o medo. Seis anos antes, em 64, no tempo de Nero, os cristãos tiveram a primeira grande perseguição. Foi uma tempestade na vida das comunidades (Mc 4,36). Muitos discípulos e muitas discípulas tinham morrido. Alguns tinham negado a fé (Mc 14,71), tinham traído (Mc 14,10.45) ou fugido (Mc 14,50) e se dispersaram (Mc 14,27). Outros tinham caído do primeiro fervor (Ap 2,4). A rotina estava tomando conta da vida deles. Muita gente estava desanimada. Marcos quer animá-los.
2 Rebelião dos judeus da Palestina contra a invasão romana
Naqueles mesmos anos, entre 67 e 70, os judeus da Palestina tinham se rebelado contra a invasão romana. Jerusalém, a capital, estava cercada pelo exército romano, ameaçada de destruição total (Mc 13,14). Muitos cristãos – a maioria – eram judeus. Eles não sabiam se deviam ou não entrar na rebelião contra o Império Romano. Havia divisão entre os próprios judeus. Este problema político causava muitas tensões nas comunidades. O horizonte não estava claro. Marcos quer clarear horizontes.
3 Problemas internos de liderança
Havia os problemas internos de liderança. A maior parte dos apóstolos já tinha morrido. Uma nova geração de líderes estava assumindo a coordenação. Isto causava tensões, ciúmes e brigas (Mc 9,34.37; 10,41). Não era claro como se devia coordenar uma comunidade cristã. Marcos procura dar alguns conselhos.
4 Será que existe perdão para quem renegou a fé durante a perseguição de Nero?
A perseguição foi em 64. Passaram-se cinco ou seis anos. O perigo maior parecia ter passado. Alguns dos que tinham negado a fé queriam voltar e participar de novo da vida da comunidade (Mc 14,30-31.72). Como Bartolomeu, queriam “ver de novo” (Mc 10,51). Era possível voltar? Podiam ser acolhidos novamente? A ruptura podia ser desfeita? Alguns achavam que não poderiam ser acolhidos. Copo quebrado, mesmo você querendo, não tem conserto. Outros achavam que o perdão devia ser possível. O que fazer? Marcos traz uma luz.
5 Quem é Jesus? Como entender a sua cruz?
Os judeus não cristãos diziam que Jesus não podia ser o messias, pois, segundo a Bíblia, um condenado à morte na cruz devia ser considerado como um “maldito de Deus” (Dt 21,23). Como é que um maldito de Deus poderia ser o messias? (cf. Mc 8,32). A cruz era um impedimento para crer em Jesus, “um escândalo!”, assim diziam (1Cor 1,23). Por isso, muita gente se perguntava: Afinal, quem é Jesus? (Mc 4,41). Será que ele é realmente o messias, o Filho de Deus? (Mc 1,1; 14,61; 15,39). Marcos oferece uma resposta.
A mensagem central que Marcos quer comunicar
Apesar de muitos, os problemas não foram capazes de desviar os cristãos da fidelidade ao compromisso fundamental da sua fé: seguir Jesus. No meio de tantas preocupações, a preocupação maior continuava sendo: como ser discípulo de Jesus. Esta ainda é a preocupação que, até hoje, em toda parte, suscita comunidades em torno da Palavra de Deus e que, no Mês da Bíblia, nos leva a abrir o Evangelho para saber como seguir Jesus neste nosso Brasil, no começo deste novo milênio.
Marcos pensa nestes problemas todos quando relata os gestos e as palavras de Jesus. Ele quer ajudar as comunidades a encontrar o caminho certo do seguimento de Jesus. Os ensinamentos de Jesus que ele relata já eram conhecidos. É como hoje. Quando nos domingos ouvimos a leitura do Evangelho, a gente já conhece o texto. O que é novo é o sermão do padre ou a explicação da ministra da palavra. As comunidades para as quais Marcos escreve já conheciam as histórias da vida de Jesus. Havia quase trinta anos que elas meditavam sobre as histórias em suas reuniões semanais. O novo de Marcos é o seu jeito de contar os fatos e de transmitir os ensinamentos. Ele transforma as histórias de Jesus em espelho, para que as comunidades descubram nelas como ser discípulo de Jesus. É por isso que o seu evangelho dá um destaque tão grande aos discípulos.
De fato, no Evangelho de Marcos, os discípulos e discípulas são o xodó de Jesus. A primeira coisa que Jesus faz é chamar discípulos (Mc 1,16-20) e a última que faz é chamar discípulos (Mc 16,7.15). Ele os leva consigo, do começo ao fim, em todo canto, e chega a dizer: “São meus irmãos, minhas irmãs, minha mãe!” (Mc 3,34). Quando não entendem algo, eles perguntam e Jesus, em casa, explica tudo dizendo: “A vocês é dado o mistério do Reino, mas aos de fora tudo acontece em parábolas” (Mc 4,11; cf. 4,34). O evangelista faz isto para que as comunidades e todos nós, seus discípulos e suas discípulas, saibamos e sintamos que, apesar dos nossos muitos problemas e defeitos, somos o xodó de Jesus.
E não é só isto. Marcos quer dizer algo mais. A maneira de ele falar dos discípulos causa uma certa estranheza. No começo, os discípulos parecem um grupo privilegiado, uma comunidade modelo. Mas, quase que de repente, tudo desanda. A gente fica impressionada quando olha de perto o comportamento deles. Eles, a quem tinha sido dado o Mistério do Reino (Mc 4,11), de repente começam a dar sinais de não entenderem mais nada e de serem tudo menos discípulos de Jesus. Não compreendem as parábolas (Mc 4,13; 7,18). Não têm fé em Jesus (Mc 4,40). Não entendem a multiplicação dos pães (Mc 6,52; 8,20-21). Não sabem quem é Jesus, apesar de conviverem com ele (Mc 4,41). Antes conseguiam expulsar os demônios (Mc 6,13), mas agora já não conseguem mais (Mc 9,18). Brigam entre si pelo poder (Mc 9,34; 10,35-36.41). Querem ter o monopólio de Jesus (Mc 9,38). Levam susto quando Jesus fala da cruz (Mc 8,32; 9,32; 10,32-34). Querem desviar Jesus do caminho do Pai (Mc 8,32). Afastam as crianças (Mc 10,13). Judas resolve traí-lo (Mc 14,10.44). Pedro chega a negá-lo (Mc 14,71-72). Na hora em que Jesus mais precisa deles, eles dormem (Mc 14,37.40). E, no fim, no momento da prisão, todos fogem e Jesus fica só (Mc 14,50).
O que será que Marcos queria dizer às comunidades (e a nós) com esta lista tão impressionante de defeitos dos discípulos? Será que queria meter medo e afastá-las de Jesus? Certamente que não! É que um evangelho não vale só pelas informações que oferece sobre Jesus. Quem lê o evangelho só para obter informações sobre o que aconteceu no passado no tempo de Jesus pode até chegar a conclusões erradas. Quem vê de longe um carro fazendo muita curva na estrada pode concluir: “Deve ter muito buraco e curva naquela estrada”. Mas não era nada disso. Aquele motorista balançava o carro, porque queria acordar o companheiro surdo que dormia no banco traseiro! Assim é com o Evangelho de Marcos. Alguns, vendo Marcos insistir tanto nos defeitos dos discípulos, concluem: “Aqueles primeiros discípulos não prestavam mesmo!”. E não era nada disso. Marcos insiste nos defeitos dos primeiros discípulos, para que as comunidades do seu tempo (e do nosso tempo), olhando no espelho do evangelho, não desanimassem diante dos seus defeitos e problemas. Jesus não chamou gente santa, mas, sim, gente comum e bem humana como todos nós, com suas falhas e defeitos. Marcos faz saber que o amor de Jesus é sempre maior do que nossos defeitos e nossas faltas. Os discípulos negaram, traíram e abandonaram Jesus. Mesmo assim, Jesus não os abandonou, mas continuou sendo o amigo que mandou chamá-los e os acolhia de novo como seus irmãos (Mc 14,27-28; 16,6-7). Nós podemos romper com Jesus. Somos fracos. Jesus nunca rompe conosco! Tem esperança!
A dinâmica que Marcos usa para comunicar sua mensagem
O Evangelho de Marcos é como um bom romance. Lendo o romance, você se identifica com as pessoas que aparecem na história e começa a envolver-se com os problemas que elas estão vivendo. O mesmo acontece com as novelas da televisão. Você se envolve com as personagens da novela. O Evangelho de Marcos faz o mesmo. Não só informa sobre aquilo que Jesus fez e ensinou no passado, mas leva a gente a se envolver com a longa caminhada dos discípulos e das discípulas, desde a Galileia até Jerusalém.
Marcos começa dizendo: “Princípio da boa-nova de Jesus Cristo, Filho de Deus!” (Mc 1,1). E no fim, na hora em que Jesus morre, ele afirma de novo: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). No começo e no fim, está a afirmação de que Jesus é o Filho de Deus. Entre estes dois pontos, isto é, entre o lago na Galileia e o calvário em Jerusalém, corre a Estrada de Jesus! Corre a caminhada difícil dos primeiros discípulos e discípulas. Em algum lugar, entre estes mesmos dois pontos, caminhavam as comunidades dos anos 70 na Itália ou na Síria, procurando acertar o rumo. Caminhamos também nós, uns já um pouco mais adiantados e outros ainda bem no comecinho, mas todos buscando acertar o caminho, querendo ser discípulo e discípula de Jesus.
Nos sete Círculos Bíblicos que seguem neste livrinho, iremos caminhar na estrada de Jesus, tendo Marcos como guia. Vamos olhar no espelho que ele coloca diante de nós para descobrir nele nosso rosto e assumir melhor nosso compromisso como “discípulos e missio- nários de Jesus, para que nele nossos povos tenham vida”.
Assim, iniciando a leitura do Evangelho de Marcos, vamos sentir o entusiasmo dos discípulos, desde a primeira chamada à beira do lago (Mc 1,16). Vamos nos envolver com eles e com Jesus, crescendo em entusiasmo até recebermos o envio definitivo para a missão (Mc 6,13).
Ao mesmo tempo, vamos sentir o desencontro que vai aparecendo entre Jesus e os discípulos. Vamos viver a crise que eles viveram. Este desencontro entre Jesus e os discípulos já aparece bem no começo da caminhada (Mc 1,35-38) e, no fim, chega a uma quase ruptura (Mc 8,14-21).
Andando no caminho que os primeiros discípulos percorreram junto com Jesus, experimentaremos também nós a bondade de Jesus que não desiste em ajudar os discípulos, apesar dos seus muitos defeitos. Junto com os discípulos, vamos receber a longa instrução (Mc 8,22 até 13,37) para descobrir e eliminar de dentro de nós “o fermento dos fariseus e dos herodianos” (Mc 8,15).
No fim, o acolhimento e o amor maior de Jesus diante do fracasso dos discípulos tornam-se também para nós um apelo renovado para continuar caminhando na estrada de Jesus. Vamos descobrir que o mesmo Jesus continua no nosso meio, sempre pronto para acolher-nos e chamar-nos de novo! Não existe incentivo maior para quem tem boa vontade, mas sente sua fraqueza e seus limites. Repetimos: Nós podemos romper com Jesus. Somos fracos. Jesus nunca rompe conosco.
Um esquema para perceber o rumo do Espírito no Evangelho de Marcos
Para perceber o rumo do Espírito de Jesus que percorre o Evangelho de Marcos de ponta a ponta, é bom ter uma visão global das suas principais divisões. Para isso, é importante ter presente estas duas coisas:
Em primeiro lugar, o Evangelho de Marcos não é um tratado, mas, sim, uma narração. Um tratado tem divisões bem claras. Uma narração é como um rio. Percorrendo o rio de barco, você não percebe divisões dentro da água. O rio não tem divisão. É um fluxo só, do começo ao fim. Num rio, as divisões, você as faz a partir da margem. Por exemplo, você diz: “Aquele trecho bonito que vai daquela casa na curva até a palmeira, três curvas depois”. Mas dentro da água você não percebe divisão nenhuma. A narração de Marcos flui como um rio. Tem muitas curvas, mas as suas divisões não são muito precisas. Os ouvintes as encontram na margem, isto é, nos lugares por onde Je- sus passa, nas pessoas que ele encontra, nas estradas que percorre. O quadro geográfico ajuda o leitor e a leitora a não se perderem no meio da narração, a se situarem na estrada de Jesus e a caminharem com ele, passo a passo, desde a Galileia até Jerusalém.
Em segundo lugar, o Evangelho de Marcos, muito provavelmente, foi escrito, inicialmente, para ser lido de uma só vez na longa vigília de Páscoa. Os judeus costumavam fazer assim com alguns dos pequenos Escritos do AT. Por exemplo, na noite de Páscoa, eles liam de uma só vez todo o livro do Cântico dos Cânticos. Para os ouvintes não se cansarem, a leitura tinha que ter suas pausas. Pois, quando uma narração é mais longa, como a do Evangelho de Marcos, a leitura deve ser interrompida de vez em quando. Em certos momentos, tem que haver uma pausa, um canto. Do contrário, os ouvintes se perdem ou começam a dormir. Até hoje, fazemos a mesma coisa. Na liturgia da vigília de Sábado Santo, por exemplo, temos sete leituras, intercaladas com cânticos e orações que servem como pausas. Estas mesmas pausas transparecem na maneira de Marcos narrar os fatos da vida de Jesus. São os pequenos resumos ou dobradiças, entre uma e outra leitura mais longa. Hoje, as novelas da televisão fazem a mesma coisa. Todos os dias, no início da novela, elas repetem as últimas cenas do dia anterior. Quando terminam, fazem ver as primeiras cenas do dia seguinte. Estes resumos são como dobradiças: recolhem o que se leu e abrem para o que vem depois. Permitem parar e recomeçar, sem interromper ou atrapalhar a sequência da narração que flui como um rio. O Evangelho de Marcos tem várias destas pausas ou pequenos resumos que nos permitem seguir o fio da meada, o rumo do Espírito. Ao todo, são sete leituras, intercaladas por pequenos resumos, onde é possível fazer uma breve interrupção. Mais tarde, quando o Evangelho de Marcos começou a ser usado fora do contexto da vigília de Páscoa, acrescentou-se o apêndice final que nos dá um resumo das principais aparições de Jesus ressuscitado (Mc 16,9-20).
Eis o esquema que pode ajudar a gente a perceber a sequência das ideias, a captar a mensagem e a descobrir o rumo do Espírito que percorre o Evangelho de Marcos de ponta a ponta. Este Espírito nos ajudará a olhar para dentro do texto e descobrir nele a boa-nova de Deus que Jesus nos revelou.
Autores:
CARLOS MESTERS é frade carmelita desde 1951. Estudou a Bíblia em Roma e em Jerusalém, de 1954 a 1963. Foi professor de Bíblia no seminário em São Paulo e Belo Horizonte de 1963 até 1973. A partir de 1973, traba lhacom a Bíblianas Comunidades Eclesiais de Base. Participa do CEBI desde o seu início até hoje.
FRANCISCO OROFINO é leigo católico, professor de Teologia Bíblica em Nova Iguaçu (RJ) e assessor do CEBI e do ISER Assessoria.