Fazendo ecoar o Dia Mundial das Pessoas Refugiadas, partilhamos com você o artigo “Nos caminhos da migração – entre a fome e a esperança de dias melhores”, do professor William César de Andrade.
Recomendamos também que ouça o podcast do CEBI em que a jornalista Bella Ribeiro, da Igreja Refugo, conversa com a Maynara Nafe, tendo enfase na questão Palestina. Ouça clicando AQUI.
“E disseram ao Faraó: Viemos para morar nesta terra, porque não há pasto para as ovelhas de teus servos, pois a fome na terra de Canaan é forte; e agora te rogamos: Que teus servos fiquem na terra de Góshen” (Gn 47,4)
Migrar é tão antigo quanto a própria humanidade, basta um rápido olhar sobre os incontáveis ir e vir de povos ao longo do tempo. O que tem sido variável nesta história de longa duração são os motivos que fundamentam essa situação de mobilidade.
A Bíblia relata em diversas ocasiões processos de migração dos hebreus/judeus, seja motivado pelo desejo de encontrar uma terra melhor e/ou condições de vida que estivessem compatíveis com sua fé e tradições, seja por razões da deportação ou mesmo o medo da guerra.
Assim, desde sua ‘pré-história – o tempo patriarcal – até o começo de sua história propriamente dita – a entrada na terra prometida e a organização do povo em tribos, as sagas refletem um processo de contínuas migrações, de instabilidade e ao mesmo tempo de confiança de que o Altíssimo guia os acontecimentos e cuida dos seus ‘eleitos’.
Nas narrativas em torno do ciclo de José do Egito (Gn 37-50), encontramos a dura realidade à qual estão submetidos os pobres que dependem do Faraó e de sua política de controle e distribuição de alimentos em momentos de crise provocada por fatores ambientais – a seca prolongada – ou mesmo pelo excesso de tributação. A fome é uma realidade que atinge aos camponeses egípcios, bem como aos povos que estão vinculados de forma dependente a este império.
É conhecimento histórico que a região de Canaan, é considerada pelo império Egípcio como parte de seus domínios, ainda que a presença de exércitos e de ‘interventores’ da burocracia estatal só ocorra em momentos de crise. No dia-a-dia a dominação se dá por meio da tributação e da afirmação de fidelidade das cidades-estados cananeias ao Faraó e sua política para a região. Há outros impérios (Mitanni, Assíria, Babilônia, hititas e mesmo, povos (filisteus…) em busca de novos territórios na região do Crescente Fértil, o que torna a situação de grupos marginalizados como os hebreus (aqueles que as narrativas bíblicas associam as memórias de um arameu errante chamado Abraão) ainda mais dramática.
Em Canaan o pequeno grupo dos descendentes de Abraão e Sara, vivia nas montanhas e em poucas cidades que a eles estavam vinculadas. Seminômades criadores de gado miúdo (ovelhas e cabras) e de uma incipiente agricultura de subsistência. Dificuldades sempre estiveram presentes no cotidiano e na memória do povo. Assim, até mesmo nas narrativas dos pais fundadores (Abraão e Sara) a fome os levou a migrar: “E houve fome na terra, e desceu Abrão ao Egito para morar ali, porque era grande a fome na terra”(Gn 12,10).
Na continuidade da narrativa sobre a ida de Abraão e Sara para o Egito o texto deixa claro que ocorreram outros problemas além da fome. Para o leitor atual acaba um pouco confuso e de difícil interpretação a ocultação da condição de esposa de Sara, as expressões de medo diante da possível ameaça à vida de Abraão e, os desdobramentos junto ao Faraó (Sara é levada para ser uma de suas ‘concubinas’) e, ao termino da narrativa Abraão é obrigado a deixar o Egito e retornar à Canaan. Nem mesmo o retorno a Canaan assegurou a Abraão e sua família a tranquilidade que esperavam. Pois, os ‘problemas’ com a ‘beleza’ de Sara também se repetiram por lá com um rei local – Aviméleh.
Os descendentes de Abraão, que a tradição judaica liga à promessa da terra e da aliança perpétua entre o Altíssimo e um povo (as tribos de Israel), não teve uma vida fácil em Canaan. Prova disso é que a fome volta a assolar a região e Isaque sofre suas consequências: “E houve fome na terra, além da primeira fome que houve nos dias de Abrahão. E Isaac foi a Guerar, a Aviméleh, o rei dos filisteus. E o Eterno apareceu-lhe e disse: “Não desça ao Egito; mora na terra que te direi.” (Gn 26,1.2). Com Jacó e seus filhos e filha (Dina) a situação não será diferente, pelo contrário, ela irá se agravar.
Assim, a falta de chuvas, os enfrentamentos a povos vizinhos, a pesada tributação imposta pelo Egito, novos movimentos migratórios na região (a chegada dos chamados povos do mar – filisteus) enfim, tudo isso fez aqueles hebreus chegarem a seu limite e, arriscando tudo os filhos de Jacó viajaram ao Egito em busca de alimento.
Sem entrar no debate sobre o processo de produção das narrativas acerca de José e da permanência dos hebreus no Egito, somos levados a perceber que a precarização nas condições de vida não ocorreu de uma vez, ou mesmo poderia ser solucionada num passe de mágica. As idas e vindas dos ‘filhos de Jacó’, nos ‘7 anos de vacas magras e espigas de milho chochas’, transportando víveres comprados no Egito, são indicativos do esforço de permanência na terra natal, mas também revelam que a situação passou a exigir soluções mais drásticas.
No versículo de abre essa reflexão fica evidente que um povo antes livre e autônomo passou a ser servo (súdito) do Faraó e isso fica expresso no motivo que os levou a essa nova condição: “não há pasto para as ovelhas…a fome na terra de Canaan é forte”. A migração, nas circunstâncias aqui apresentadas sem dúvida nenhuma é forçada e terá profundas consequências na vida dos ‘hebreus’ e em seu modo de perceber a presença de Deus em sua vida cotidiana e na própria história dos migrantes que se tornaram escravos no Egito.
Em nossa caminhada atual as narrativas bíblicas servem de inspiração, verdadeiros sinais de como uma massa (os migrantes hebreus) forjaram a continuidade de suas tradições, juntamente com a experiência histórica da condição de estrangeiros e escravos do império egípcio. Ontem como hoje a motivação para a migração forçada foi algo concreto: a fome. Mas sempre existiram e existem atualmente outros motivos, assim, tudo o que pode ser relacionado à precarização das condições de vida de uma família ou mesmo de um grupo mais amplo (aldeia ou mesmo etnias), sem dúvida faz parte da mobilidade forçada de muitas populações mundo a fora.
Não podemos esquecer que “… o Eterno disse: “Tenho visto a aflição do Meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa de seus capatazes, porque conheci as suas dores. E desci para o livrar do poder do Egito e para o fazer subir daquela terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que emana leite e mel (Ex 3.6.8). E mais que isso, devemos nos comprometer com a defesa da vida dos migrantes e com a construção de um mundo melhor e mais justo. Shalon!
Autor: William César de Andrade