Por: Cláudio Márcio Rebouças da Silva[1]
O debate sobre território de identidade é bastante comum no que tange aos aspectos culturais, históricos, geográficos, simbólicos e de pertencimento. Em pequeninas cidades do interior da Bahia, Muritiba, por exemplo, é comum fazer referência a alguém dizendo de quem ele(a) é filho(a) e ou uma referência a profissão dos pais: filho de fulano da padaria, filha de fulana que é enfermeira no hospital, filha daquele taxista, filho daquela costureira…Sabe-se que essa dinâmica não funciona em grandes centros urbanos onde há uma multidão de anônimos(as).
Neste sentido, ao nos depararmos com o pertencimento territorial, duas dimensões são colocadas diante de nós, a saber: o estigma e o empoderamento. A primeira com o intuito de desprezar, marginalizar, marcar, excluir, silenciar e controlar. Já a segunda dimensão é de recriação, subversão, liberdade, grito da existência e potência de vida, isto é, o manancial que brota no deserto. É borboleta em cores, beleza e voo, mas, sabe que já foi lagarta rastejante no chão.
Ora, o Evangelho de Lucas 4.21-30 traz a nossa memória um pouco deste processo supracitado. Nele encontramos Jesus de Nazaré ungido pelo Espírito para uma missão de serviço, cuidado e libertação. Encontramos pessoas admiradas com a maneira que ele comunicava, ou seja, com autoridade. Sara enfermos, anuncia o ano do perdão das dívidas, consola enlutados, aponta liberdade aos cativos, uma nova visão aos cegos. A multidão ficava encantada.
Entretanto, o estigma é acionado: não é este o filho de José carpinteiro? Quantas vezes escutamos algo semelhante em nosso cotidiano? Alguém que não pergunta para tirar uma eventual dúvida, mas, para nos humilhar. É como se o pano de fundo fosse: ele está achando que é quem mesmo? De onde vem e filho de quem é para se sentir “estrela”? Sabe aquele padrão da carteirada existente na cultura brasileira ao dizer: você sabe com quem está falando? Amigo(a) leitor(a), permita-me o anacronismo. Ao ler esse texto do Evangelho essa realidade salta diante de meus olhos com muita nitidez.
Sabe-se que os profetas não são valorizados em sua terra, uma vez que, eles causam muito incômodo para os promotores da injustiça. O profeta é aquele que coloca uma lente nova nos óculos e convida para perceber outra realidade. O profeta é aquele que lembra que é preciso que fé e prática sejam faces da mesma moeda. Com efeito, quando Jesus faz referência e problematiza a experiência da escritura com viúvas e leprosos com suas necessidades e, nem todos(as) foram atendidos e ou sarados, o pessoal não gosta da conversa. Jesus lembra a dureza e a complexidade da existência.
Honestamente, ao pensar na narrativa “o profeta não tem valor em sua terra”, imagino Jesus dizendo: parem com esse complexo de vira-lata. Parem de acreditar que alguns de fora são melhores e superiores. Não me tragam estigmas querendo travar meus pés, pois, vou ressignificar. Vos digo hoje que a salvação brota da periferia. Vos digo hoje que prestem atenção na experiência afro-indígena do cuidado com a natureza. Vos digo hoje que em muitos espaços eclesiásticos que vocês dizem que fizeram para mim e que é minha casa, será mesmo? Eu não estou conseguindo entrar. Vocês falam de minha roupa, do meu corpo, de minha cor, de minha sexualidade, do meu CEP.
Irmãos e irmãs, suspeito que o Evangelho de hoje nos convida a uma reflexão profunda no que tange a nossa compreensão de como nos relacionamos com Jesus de Nazaré e se estamos prontos a acolher e praticar seus ensinamentos. É hora de nos perguntarmos: vamos também fugir, se escandalizar, ficar chateado com as palavras de Jesus para nós? Só aceitamos a vida com plenitude que ele nos oferece, todavia, o compromisso de salgar e iluminar esse mundo caótico nos esquivamos? Queremos suas bênçãos, mas, queremos ser uma bênção? Hoje é dia de orarmos com o nosso irmão São Francisco:
Senhor,
Fazei de mim um instrumento de vossa Paz.
Onde houver Ódio, que eu leve o Amor,
Onde houver Ofensa, que eu leve o Perdão.
Onde houver Discórdia, que eu leve a União.
Onde houver Dúvida, que eu leve a Fé.
Onde houver Erro, que eu leve a Verdade.
Onde houver Desespero, que eu leve a Esperança.
Onde houver Tristeza, que eu leve a Alegria.
Onde houver Trevas, que eu leve a Luz!
Ó Mestre,
fazei que eu procure mais:
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando, que se recebe.
Perdoando, que se é perdoado e
é morrendo, que se vive para a vida eterna!
De fato, oramos e agimos. Somos teimosos em fé e compromisso. O Espírito Santo nos unge também para a espiritualidade do serviço, da libertação e pela garantia dos Direitos Humanos. Lembremos do saudoso João Dias de Araújo: “a injustiça é contra Deus e a vil miséria insulta os céus”. A salvação periférica nos aponta dimensões de coletividade, de solidariedade, de reinvenções de projetos de vida. Seguir a Jesus não é assumir um projeto de poder, mas, de amor e cuidado com o outro em sua diversidade.
Jesus, o filho de Deus também foi filho de Zé e de Maria. A periferia tem muitas mães e pais que cuidam, educam e resistem cotidianamente. Talvez, nossas igrejas tenham se perdido um pouco aqui ou ali no processo e precisem urgentemente de um reencantamento que brota das periferias urbanas e rurais do nosso território nacional chamado Brasil.
[1] Reverendo da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil em Muritiba (cidade serrana do território do Recôncavo da Bahia).