Leia a reflexão sobre Marcos 10,46-52, texto do Kinno Cerqueira
Boa leitura!
A narrativa de Mc 10,46-52 é um dos mais belos e sedutores quadros literários deste Evangelho. A sedutora beleza desse quadro literário justifica em grande parte sua posição no plano literário do Evangelho de Marcos, que é a de ápice conclusivo da famosa seção intitulada O caminho para Jerusalém (Mc 9,2–10,52). É, ainda, a bela sedução desse quadro literário que lhe assegura não passar despercebido aos olhos do leitor. Numa palavra: um quadro literário inelutável e, portanto, incontornável.
O cenário da narrativa é Jericó (Mc 10,42), lugar de passagem para aqueles que vinham das bandas baixas da Galileia rumo às alturas de Jerusalém. As personagens são: Jesus, seus discípulos, uma grande multidão e Bartimeu. A trama narrativa é veloz: a menção de que haviam chegado a Jericó é sucedida pela menção de que estavam saindo de Jericó (Mc 10,46), o que faz pensar numa passagem tão apressada, a ponto de desencadear uma espécie de ofegância no leitor. A pressa não é assinalada fortuitamente: pelo contrário, parece estar posta em função da evidenciação da força da inesperada personagem que fará cessar o tropel, a saber, Bartimeu.
Quem é Bartimeu? O texto não o entrega biograficamente pronto e acabado. A princípio, oferta-se uma biografia das mais desinteressantes, para não dizer precária e penosa: além de filho de um ninguém Timeu, é cego, mendigo e marginal (Mc 10,46). Definitivamente, uma reles e caricata figura dentre os descartados de seu povo. De súbito, porém, a inofensiva personagem faz algo mais que estender a mão à espera de uma moeda: ouvindo que era Jesus Nazareno que passava pelo caminho em que ocupava uma pequena beira, começa a gritar (Mc 10,47), a suplicar a compaixão do passante-mor, e tanto mais o repreendesse a multidão para que se calasse, tanto mais gritava ainda mais forte (Mc 10,48): “Filho de Davi, Jesus, tem compaixão de mim!” (Mc 10,47) e “Filho de Davi, tem compaixão de mim!” (Mc 10,48).
Como os gritos não paravam, Jesus parou e disse que o chamassem (Mc 10,49). Aqui, desfolha-se uma nova camada da biografia de Bartimeu: além de filho de Timeu, de cego, mendigo e marginal, Bartimeu é uma voz imprevista, sensivelmente mais penetrante que a voz do que clamara no deserto (Mc 1,2-4; cf. Jo 1,23) e mais retumbante que a daquele de quem se disse que rugiria como um leão (Am 1,1).
Personagem de movimentos abruptos, Bartimeu, tão logo foi comunicado de que Jesus o chamava, joga para longe o seu manto, dá um salto e encaminha-se para perto de Jesus. Por que será que Jesus, tendo olhos sãos, não foi até Bartimeu? A empatia do “mestre” variava? Mistérios à parte, o certo é que Jesus recepciona aquela voz imprevista com uma pergunta também imprevista: “Que queres que eu te faça?” (Mc 10,51). Ao que, sem titubeios, Bartimeu responde-lhe: “Mestre, que eu volte a ver” (Mc 10,51). A esta altura, e não antes, fica-se sabendo que a cegueira de Bartimeu não era de sempre. Bartimeu quer é voltar a ver; e indômito como era, é de se pensar que nunca se curvara totalmente ao manto de trevas que lhe envolvera os olhos.
Que ouvirá o cego? Diga-se melhor: que ouvirá o cego-mendigo-marginal? Umas poucas palavras, poucas, sim, mas suficientes: “Vai”, diz-lhe Jesus, “a tua fé te salvou” (Mc 10,52). E, de imediato, “voltou a ver e seguia Jesus no caminho”. Antes, quedava-se “sentado à beira do caminho” (Mc 10,46); agora, contudo, segue “no caminho” (Mc 10,52). A imagem do “caminho” é, pois, o que emoldura esse quadro literário dentro do qual Bartimeu figura como uma voz imprevista a embargar multidões e a rasgar as trevas. Se, no primeiro poema bíblico (Gn 1,1–2,4a), as trevas que cobriam a face do abismo foram rasgadas pelo verso poético “Haja luz!” (Gn 1,1-3), aqui, as trevas que recobriam Bartimeu são rasuradas por sua poética da imprevisibilidade.
* Pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) na área de estudos bíblicos.