“A comunidade de Marcos nos deixou como herança a memória de Jesus que no caminho e na casa ensina a ser discípula, a ser discípulo, um caminho que se abre e fecha com duas narrações de cura da cegueira. A comunidade compreendeu que o caminho do discipulado é um processo lento que exige radicalidade para se libertar da lógica do poder que rege a sociedade e a religião e imbuia os discípulos, como vimos nos domingos passados.”
A reflexão é de Tea Frigerio, mmx, religiosa da Congregação Missionárias de Maria-Xaverianas. Ela possui graduação em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma – PUG e pós-graduação em assessoria bíblica pela Escola Superior de Teologia – EST e pelo Centro de Estudos Bíblicos – CEBI, São Leopoldo/RS. Atualmente atua em assessoria bíblica pelo CEBI e é assessora nacional das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs.
Leituras do Dia
1ª Leitura – Nm 11,25-29
Salmo – Sl 18,8.10.12-13.14 (R.8a 9b)
2ª Leitura – Tg 5,1-6
Evangelho – Mc 9,38-43.45.47-48
A divisão clássica do Evangelho de Marcos coloca no seu centro o ”segredo messiânico”. Na Galileia os sinais do Reino que Jesus realiza são anuncio e provocação: a Vida tem que estar no centro (Mc 3,3). Ao mesmo tempo o comando de Jesus ao silencio, é um calar e um falar ao mesmo tempo (Mc 1,34; 3,12; 5,42).
É no caminho da Galileia para Jerusalém que Jesus rompe o silencio. Nos anúncios da morte na cruz e ressurreição se revela como Messias, Servo Sofredor. No caminho para Jerusalém quebra o silêncio e faz do seu caminho o caminho do discipulado.
O esquema a seguir nos provoca a contemplar, refletir, nosso caminho como discípulas, como discípulos.
O caminho inicia em Betsaída, ‘Casa da misericórdia’. Levam a Jesus um cego. Sua cura é um ver progressivo. Quando o cego recupera a vista Jesus o convida a não entrar na cidade, pois lá residem as autoridades políticas e religiosa; se encontra o fermento dos fariseus. O convite de Jesus é uma alerta: o centro do poder cega, precisa tomar distância.
O caminho conclui-se em Jericó com a cura de outro cego. Conhecemos o nome, Bartimeo o ‘filho de Timeo’. Ele, com sua insistência e radicalidade: abandona tudo e alcança a cura. Abandona a beira da estrada, suas seguranças, para ver Jesus e segui-lo no caminho para Jerusalém, o caminho da cruz.
A comunidade de Marcos nos deixou como herança a memória de Jesus que no caminho e na casa ensina a ser discípula, a ser discípulo, um caminho que se abre e fecha com duas narrações de cura da cegueira. A comunidade compreendeu que o caminho do discipulado é um processo lento que exige radicalidade para se libertar da lógica do poder que rege a sociedade e a religião e imbuia os discípulos, como vimos nos domingos passados.
O primeiro anuncio tem como abertura a pergunta de Jesus: “O que dizem de mim? … E para vocês quem eu sou? ” (Mc 8,27-29). Jesus pede uma adesão pessoal, pede coragem em declarar em alta voz o que acredita: declarar é aderir, é orientar a própria vida, as escolhas, o estilo de vida, é pisar nas pegadas de quem caminha a nossa frente.
O terceiro anuncio é provocado pelo pedido de Tiago e João: “Nos dá na tua glória de sentar a tua direita e a tua esquerda” (Mc 10,37). Percebemos que ainda não compreenderam … ainda são cegos!
O debate sobre quem é o maior provoca o segundo anuncio da cruz e ressurreição acompanhado de acontecimentos que se tornam para Jesus motivo de ensino e transformação.
O caminho para Jerusalém é em subida, pede de deixar para trás uma lógica para se abrir a outra, lógica outra mentalidade: compreender é aderir. Quem se apresta a subir a montanha sabe que, se quiser chegar ao topo, precisa se desfazer da bagagem pesada que torna o caminhar lento, pesado, deixa sem respiro … Subindo, Jesus penetra no profundo das pessoas e ao mesmo tempo não obriga “se alguém quer me seguir …” (Mc 8,34). É um convite, é uma opção livre. É na subida, nos acontecimentos que se entrevê o caminho do discipulado. E Jesus provoca, pergunta, convida a discernir, a escolher em liberdade as mudanças que precisa operar. Se quiser …
E, mais uma vez os discípulos, na pessoa de João dão topada feia: “Mestre, vimos um homem que expulsa demônios em teu nome. Mas nós lhe proibimos, porque ele não nos segue.” Ecoa na lamentação de João a mesma lamentação que saiu da boca de Josué: “ Moisés, meu senhor, proíba-os de fazer isso”. A resposta de Moisés: “Você está com ciúme por mim? Oxalá todo o povo de Javé fosse profeta e recebesse o espírito de Javé! ”, é como uma deixa para resposta de Jesus: “Não lhe proíbam, pois ninguém faz um milagre em meu nome e depois pode falar mal de mim. Quem não está contra nós, está a nosso favor.”
Moisés fala de ciúme. O mesmo sentimento que parece albergar o coração de João representante dos discípulos. Sentimento e atitude que alberga em nós, em muitas das nossas comunidades e paroquias. A ‘minha’ pastoral, paroquia, diocese, igreja … O olhar desconfiado … O preconceito a respeito de outras expressões religiosas … As iniciativas e convites que outros grupos nos fazem … A diversidade que nos assusta … incomoda … O medo de perder o protagonismo, a caridade que é apropriada e se torna propriedade privada …
Moisés exclamou: “Oxalá todo o povo de Javé fosse profeta e recebesse o espírito de Javé! …” Jesus proclamou: “Quem não está contra nós, está a nosso favor. ”
O Espírito de Javé, Divina Ruah, é vento livre, forte e generoso, rompe barreiras, inova e renova, cria e recria, inventa e reinventa, conectando e interligando, espalha seu sopro vital curando, libertando, convidando à solidariedade, á compaixão, à ternura, fazendo dos diversos e diversas um povo novo.
Caminho em subida, processo que exige radicalidade: cortar a mão, cortar o pé, arrancar o olho, colocar uma pedra no pescoço e se jogar no mar para não ser de escândalo. Não ser de escândalo a estes pequeninos.
Escândalo da pedra no calçado, que atropela o caminhar, que fere até que não é mais possível caminhar. A atitude de Pedro que ao ouvir que Jesus é Servo Sofredor, sua morte na cruz se coloca a sua frente e quer barrar o caminho: se torna o Tentador!
Não ser de escândalo aos pequeninos… E , mais uma vez, a carta de Tiago (Tg 5,1-6) nos vem em socorro e nos ajuda a compreender as exigências do caminho do discipulado. A mão a ser cortada é que reteve o salário dos trabalhadores. É o pé que pisou com arrogância no campo do agricultor; que ferio e sangrou a Mãe terra. O olho que cobiçou e que moveu os pés, as mãos, o coração. Melhor cortar …. Vocês condenaram e mataram o justo, e ele não conseguiu defender-se.
Jesus não está falando para os de fora, está se dirigindo aos discípulos. Tiago não está falando a povo da cidade, está falando para comunidade.
É palavra que chega até nós, as nossas comunidades e nos interroga: estamos escandalizando os pequeninos, apoiando o agronegócio, a destruição da Amazônia, ameaçando as terras indígenas e quilombolas, arrochando o salário, os alugueis, a cesta básica … de que lado estamos? Com quem nos articulamos? Reconhecemos os aliados? Nos consideramos os ‘puros’, ‘eleitos’, fechados em nossos grupos ‘espirituais’ … o acolhemos o chamado da vida que nos convida a conectar, articular, estar interligado viver o canto ‘ninguém solta a mão de ninguém’.
Eu garanto a vocês: quem der para vocês um copo de água porque vocês são de Cristo, não ficará sem receber sua recompensa. Ser reconhecidos como ‘ser de Cristo’.
Fonte : Portal do Instituto Humanitas-Unisinos /Adital