
Reflexões para o Tríduo Pascal elaboradas pelo irmão Marcelo Barros
Para introduzir o Tríduo Pascal
Páscoa vem do verbo hebraico Pèsah
Significa passar.
Páscoa não tem sentido
para pessoas acomodadas.
Não é festa para gente caseira
que tem dificuldade de sair de casa.
Páscoa é só para migrantes
que teimam em atravessar fronteiras.
Celebremos a Páscoa para aprendermos
a abrir passagens onde só há muros e vigilância.
Que estas celebrações nos ajudem
a saltar obstáculos e escapar de cada cilada
armada para interromper nossa corrida.
Que a Páscoa nos torne sempre mais atletas
na construção insistente e cotidiana da Paz.
5ª feira santa: Jo 13, 1 – 15
A Páscoa da Ceia
“Desejei ardentemente comer com vocês esta Páscoa antes de padecer” (Lc 22, 14).
Hoje, essas palavras podem tomar para nós diversos significados: O primeiro é o mais simples: Que vontade imensa de estar junto das pessoas queridas que, como eu e vocês, sentem necessidade íntima e profunda de celebrar a Páscoa. Como seria bom reunirmos todos os amigos e amigas mais queridos para celebrarmos juntos essa Páscoa.
No evangelho de João (13, 1- 15) lido na celebração da 5ª feira santa, há um problema com a liturgia da eucaristia. O quarto evangelho substitui o rito da eucaristia pelo lava-pés e isso não pode ter sido por acaso ou por algum esquecimento.
Comumente o lava-pés é considerado como o sacramento do serviço humilde e generoso uns aos outros. Os exegetas interpretam o texto como preparação dos discípulos para o mistério da Cruz de Jesus. Há várias expressões e gestos que ligam o lava-pés e o que acontece um dia depois no Calvário. Os verbos usados para narrar os dois acontecimentos são os mesmos. O lava-pés é como anúncio da paixão que dá significado à morte de Jesus. Mas, os comentadores antigos iam além disso. Alguns lembram que as bilhas de água deveriam estar no santuário para que nenhum sacerdote entrasse no santuário sem lavar os pés e sem estar purificados (Ex 30). Traduzindo para nós hoje, seria: “O lava-pés era uma preparação para o encontro com Deus”. Então, se Jesus lava os pés dos discípulos significa que ele não só está anunciando a sua morte e mostrando o significado de amor que ele quer dar à sua morte, mas está preparando os discípulos e discípulas para o martírio, já que os pés que estão sendo lavados são deles e delas. Os discípulos vão mesmo sofrer e doar a sua vida. Vão enfrentar o martírio.
Nós todos, discípulas e discípulos de Jesus pertencemos pelo batismo à irmandade dos/das mártires que deveria ser toda Igreja cristã.
Vocês que estão lendo essa página participam comigo do caminho de um Cristianismo que, sem descuidar da dimensão interior e mística, assume ser uma espiritualidade libertadora também no plano social e político. Assim sendo, somos da Irmandade dos/das Mártires da Caminhada.
Como sempre precisamos repetir, o martírio não é apenas um modo de morrer. É um jeito de viver e temos de aprender isso de Jesus e uns com os outros/com as outras. Que jeito? Como seria?
Depois de lavar os pés dos discípulos e discípulas, Jesus diz: “Eu lhes dou um novo mandamento: que vocês se amem uns aos outros como eu os amei. O mundo vai saber que vocês são meus discípulos e discípulas se se amarem uns aos/às outros/as” (Jo 13, 34- 35).
É difícil expressar a alegria e felicidade que podemos experimentar na vida, se levamos a sério essas palavras de Jesus. Elas se dirigem a nós, a mim e a vocês. Elas nos são dadas como “mandamento”, que na Bíblia, não significa ordem dada a alguém e sim orientação, rumo a ser dado à vida.
Assim como o termômetro mede febre e o aparelho de pressão diz a temperatura, Jesus deixa um sinal e instrumento que vai medir a expressão do seu amor. Deixou a ceia, ou seja, a comida partilhada, como sinal do maior amor e carinho. O evangelho de hoje começa dizendo: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim, ou seja, foi até o fim do amor, foi até onde o amor pode ir”. E tendo dito isso, o evangelho diz: E aí se colocou à mesa com os seus discípulos (e discípulas) para cear.
O evangelho de João dedica três capítulos às palavras de Jesus depois da ceia. E que palavras de carinho. É difícil imaginar, hoje, um pastor ou padre que tivesse coragem e condições de afirmar aquilo às pessoas com as quais celebra: “Assim como o Pai me ama, com esse mesmo amor divino, eu amo vocês… Não chamo vocês de servos, mas de amigos… Eu quero lhes dar minha alegria. Que o amor com o qual amo vocês, esteja em cada um e assim vocês se amem. Ninguém tem maior amor do que a pessoa que aceita dar a vida pela pessoa que ama… Deixo a vocês o meu sopro mais íntimo”….
Não sei se alguém que entrar hoje em uma Igreja (Católica ou evangélica) e assistir uma missa vai poder descobrir nessa cerimônia a ceia de tanto amor que Jesus quis que ela fosse. Será que nossas celebrações continuam a ser esse rito de amor que Jesus pensou em deixar para nós?
E nós? Será que nos enchemos assim de amor e não de qualquer amor, mas do amor divino para nos colocarmos na ceia de Jesus? Será que as pessoas que frequentam e participam de nossas missas podem perceber que a ceia que celebramos é expressão profunda desse amor divino de Jesus e que nós aceitamos viver e manifestar?
A preocupação com a vida do povo tem de ser o pano de fundo da celebração eucarística. O lavar os pés uns dos outros é o gesto de vida que a eucaristia deve representar, significar e expressar. Por mais bonito e comovente que seja o rito, se ele não corresponde à verdade da qual ele fala, se transforma em mentira, como seria o abraço ou carinho feito em alguém que não corresponda a uma verdadeira afeição e a entrega da nossa vida uns aos outros como foi o caso de Jesus. Temos de ajudar nosso povo a transformar essa catástrofe do genocídio que estamos vendo e sofrendo no Brasil em martírio que possibilite sair disso para uma vida nova, um tempo novo de nova Política e de libertação e vida digna para todos e todas.
6ª Feira Santa: Páscoa da Cruz
João 18, 1 – 19, 42
O Amor é mais forte do que a morte
Ao escutar essa longa leitura da paixão de Jesus segundo João, somos convidados, em primeiro lugar, ao silêncio da adoração e à comunhão com essa doação martirial de Jesus que, como diz esse mesmo evangelho, no início do capítulo 13 com o qual começa o livro da hora: “Tendo amado aos seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”. Isso é: foi até onde o amor pode ir, até onde o amor pode conduzir alguém. Durante a ceia, o próprio Jesus disse aos discípulos e discípulas: “Ninguém tem maior amor do que quem dá sua vida pelas pessoas que ama” (Jo 15, 13).
Este relato da paixão mostra justamente isso: como Jesus dá a vida pelas pessoas que ama. Enquanto os outros relatos da paixão de Jesus nos evangelhos salientam aspectos mais históricos e factuais, o quarto evangelho retoma as principais cenas da paixão, mas mais preocupado em ressaltar a opção de amor de Jesus. Neste evangelho, mais do que em outros, parece que Jesus sempre toma a iniciativa de suas ações e as vai conduzindo como revelação do seu amor de entrega. Várias vezes, o texto de João salienta “sabendo Jesus que chegara a sua hora” (13, 2), “sabendo tudo o que iria acontecer”, portanto, Jesus tinha plena consciência dos fatos e, de certa forma, os conduzia na obediência à sua missão. Neste evangelho, Jesus não aparece prostrado no chão e em agonia. O relato da paixão começa em um jardim de Getsêmani e se conclui no jardim da sepultura e ressurreição. Jesus é como o novo Adão colocado no inicio do mundo novo, da nova criação que a sua Páscoa traz ao mundo. No relato de João quem cai por terra no Getsêmani não é Jesus. São os soldados que caem e Ele de pé por três vezes reafirma: Sou eu! Uma expressão que se liga com a palavra de Deus no Êxodo: “Eu sou Aquele que sou”. Isso não significa que o evangelho de João diga que Jesus é Deus e sim que, na paixão, Jesus revela como Deus é: assim como no Êxodo, Ele dizia: Eu sou quem serei, isso é, vocês vão conhecer quem Eu sou, pelo modo como vou agir (na libertação do povo hebreu). Do mesmo modo, agora, é pela paixão de Jesus que o próprio Deus vai revelar quem e como Ele é.
No quarto evangelho, quase não há o processo religioso do Sinédrio, já que as contendas entre Jesus e os judaítas, ou seja, as autoridades religiosas do templo já vinham contadas em vários capítulos. Neste interrogatório, um Jesus absolutamente autoconfiante se apresenta a Anás (18,20-21), de modo que seus adversários são responsabilizados por injuriá-lo (18,22). Anás deixa o interrogatório, embaraçado e sem respostas às perguntas. Jesus permanece sereno e firme. No processo junto ao governador romano, é Pilatos que diz que Jesus é rei dos judeus e Jesus diz isso a ele: “Tu o dizes!”. E até manda colocar essas palavras no letreiro a ser posto na cruz.
No próprio ato da crucifixão, Jesus se manifesta como soberano: cumpre as escrituras a respeito do Cordeiro Pascal (“tenho sede”) para que lhe ofereçam vinagre e fel, como o cordeiro deve ser cozinhado com ervas amargas. E finalmente diz: Tudo está consumado, isso é, tudo está completo. E entrega o seu espírito. Ali naquele momento, para o quarto evangelho, já é Páscoa e já é Pentecostes a entrega do Espírito.
Nos comentários tradicionais, se costuma falar de Jesus, Senhor da história que viveu a paixão quase como se fosse algo qualquer. Não é isso que este evangelho mostra e sim que Jesus revela que o amor pode vencer o ódio e o desamor por mais assassino que estes sejam.
Na sua encíclica sobre a fraternidade humana, “Fratelli tutti”, o papa Francisco insiste que ela vai além das religiões. No entanto, no final, para quem é cristão, o papa afirma que a irmandade universal tem um fundamento evangélico (FT 277). É a entrega pascal de Jesus que temos neste relato da paixão que nos faz descobrir sempre mais o fundamento evangélico dessa irmandade universal. Na Fratelli Tutti, o papa Francisco afirma: “Não podemos esquecer o desejo expresso por Jesus: «Que todos sejam um só» (Jo 17, 21). Ao escutar o seu convite, reconhecemos com tristeza que, no processo de globalização, falta ainda a contribuição profética e espiritual da unidade entre todos os cristãos. Todavia, «apesar de estarmos ainda a caminho para a plena comunhão, já temos o dever de oferecer um testemunho comum do amor de Deus por todas as pessoas, trabalhando em conjunto ao serviço da humanidade» (FT 280).
O que hoje a celebração da Páscoa da Cruz nos pede é que precisamos construir essa aliança de irmandade a partir de baixo, a partir dos oprimidos e dos povos crucificados no mundo atual. Esta celebração precisa se concretizar na nossa disposição em fazer descer da cruz de cada dia as pessoas e povos crucificados.
Vigília Pascal: Lc 24, 1- 12
(no Sábado santo à noite ou no domingo de madrugada)
O Mistério pascal da noite
Como expressar o inefável? Como explicar em palavras o sabor maravilhoso de uma comida deliciosa, mas ainda pouco conhecida? Como transmitir aos irmãos e irmãs o segredo perene e sempre jovem dessa noite?
Um espetáculo pode ser lindo e tocante. Um crítico pode explicar o seu sucesso. No entanto, se uma festa tiver um encanto afetuoso e mágico, ninguém conseguirá explicar porque as pessoas envolvidas gostam tanto. Para quem vive o mais profundo da fé cristã, a Vigília Pascal é algo assim: é um mistério, ou seja, tempo de intimidade amorosa na comunidade de fé que toca no mais profundo da vida e nenhuma palavra pode explicar.
Uma vez, perguntaram ao padre José Comblin, em sua opinião, qual teria sido o acontecimento mais importante para a Igreja Católica no século XX. Todos esperavam que ele respondesse: o Concílio Vaticano II. No entanto, o querido teólogo preferiu citar algo que esteve nas raízes do Concílio, mas lhe foi anterior. Comblin respondeu:
“O acontecimento eclesial e teológico mais importante do século XX foi a restauração da centralidade do Mistério Pascal para a Igreja”.
De fato, ele se referia ao movimento litúrgico, patrístico e teológico que redescobriu e revalorizou a centralidade da Páscoa e da ressurreição de Jesus para o pensamento, a espiritualidade e a liturgia da Igreja. Isso fez com que, em 1956, o papa Pio XII restaurou a celebração da Semana Santa e possibilitou que as comunidades pudessem celebrar a Vigília Pascal na noite do sábado, rito que desde a Idade Média tinha sido antecipado para a manhã do sábado e tinha perdido o caráter de Vigília. A partir de então, as comunidades podem celebrar essa noite que, no século IV, Santo Agostinho chamou “mãe de todas as vigílias da Igreja”.
De fato, a própria noite é símbolo da realidade do mundo envolto na escuridão e, ao mesmo tempo, mergulhado na espera do dia novo. É durante a noite que muitas comunidades indígenas celebram sua espiritualidade em redor do fogo e esperando o sol nascer. No Brasil colonial e mesmo atualmente, é durante a noite que as comunidades negras e cultos afro descendentes podem realizar os seus Xirês e suas festas. A noite tem um mistério que nos coloca em maior comunhão com o universo.
A Vigília Pascal representa a nossa esperança e nos faz celebrar as diversas passagens divinas pelo universo e pela história. Nesta noite, somos convidados/as a louvar a Deus pela criação, pela Mãe- Terra, pelo fogo que nos aquece e ilumina, pela água, mãe da vida, pela Palavra que nos coloca em comunhão, pelo Espírito que nos renova e nos mergulha na morte e ressurreição de Jesus que celebramos no batismo que renovamos e na santa ceia de Jesus que partilhamos.
Nessa noite, recordamos o projeto divino da criação e cantamos que, por essa Páscoa nova, o Espírito de Deus renove o universo. Recordamos a Páscoa do antigo povo hebreu no Egito e nos alegramos como Deus está sempre conduzindo a humanidade para a libertação. Agradecemos a Deus o nosso batismo que nos mergulha na intimidade da morte e da ressurreição de Jesus e proclamamos de novo para o mundo que Jesus ressuscitou e disso somos testemunhas.
Nessa noite, proclamamos o evangelho de Lucas 24, 1 – 12, que conta como, naquela madrugada do primeiro dia da semana, as mulheres, discípulas de Jesus foram ao túmulo de madrugada, antes do sol nascer. De acordo com Lucas, eram Maria Madalena, Salomé e Maria, mãe de Tiago, mas ele diz que as outras discípulas também anunciaram a ressurreição. As mulheres foram de madrugada ao túmulo. Levavam perfumes, mas encontraram o túmulo vazio e viram dois homens com vestes resplandescentes. Elas abaixam a cabeça com medo, mas eles lhes dizem:
– Por que vocês procuram entre os mortos, Aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou. Lembrem-se de que, ainda na Galileia, ele tinha dito que o Filho do Homem devia ser entregue nas mãos dos pecadores, seria crucificado, mas, ao terceiro dia, ressuscitaria.
O evangelho diz que elas se lembraram de suas palavras. Sobre o testemunho dessas mulheres, se fundamentará toda a fé da Igreja, chamada a ser testemunha teimosa da ressurreição. Essa palavra que as mulheres escutaram naquela madrugada no túmulo vazio continua a ressoar para nós, hoje: “Por que procurar entre os mortos Aquele que está vivo?”.
Na Vigília Pascal de 2019, depois de ouvir esse anúncio da ressurreição no evangelho de Lucas, o papa Francisco propôs:
“Irmãos e irmãs, voltemos à Galileia. Recordando Jesus, as mulheres deixam o sepulcro. A Páscoa ensina-nos que o crente se detém pouco no cemitério, porque é chamado a caminhar ao encontro do Vivente. Perguntemo-nos: na minha vida, para onde caminho? Sucede às vezes que o nosso pensamento se dirija continua e exclusivamente para os nossos problemas, que nunca faltam, e vamos ter com o Senhor apenas para nos ajudar. Mas, deste modo, são as nossas necessidades que nos orientam, não Jesus. E continuamos a buscar o Vivente entre os mortos. E quantas vezes, mesmo depois de ter encontrado o Senhor, voltamos entre os mortos, repassando intimamente saudades, remorsos, feridas e insatisfações, sem deixar que o Ressuscitado nos transforme!
Queridos irmãos e irmãs, na vida demos o lugar central ao Vivente. Peçamos a graça de não nos deixarmos levar pela corrente, pelo mar dos problemas; a graça de não nos estilhaçarmos contra as pedras do pecado e os rochedos da desconfiança e do medo. Procuremo-Lo a Ele, deixemo-nos ser procurados por Ele, procuremo-Lo em tudo e antes de tudo. E com Ele, ressuscitaremos”[1].
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Ainda nos anos de luta revolucionária contra Somoza na Nicarágua, o poeta Ernesto Cardenal escreveu muitos de seus poemas. Um deles “En Pascua resucitan las cigarras” diz assim:
En Pascua resucitan las cigaras
– enterradas 17 años em estado de larva –
millones y millones de cigarras
que cantan y cantan todo el dia
y en la noche todavía están cantando.
Solo los machos cantan:
las hembras son mudas.
Pero no cantan para las hembras:
porque también son sordas.
Todo el bosque resuena con el canto.
y solo ellas en todo bosque no los oyen.
¿Para quién cantan los machos?
¿Y por qué cantan tanto? ¿Y que cantan?
Cantan como trapenses en el coro
delante de sus Salterios y sus Antifonarios
cantando el Invitatorio de la Resurrección.
Al fin del mes, el canto se hace triste,
y uno a uno van callando los cantores,
y después sólo se oyen unos cantos,
y después ni uno. Cantaron la resurrección”.
ERNESTO CARDENAL, Antologia, Cuadernos Latinoamericanos 6, Ed. Carlos Lohlé, Buenos Aires, México, 1974, p.75.
Domingo da Ressureição do Senhor
João 20, 1-9
“Este é o dia que o Senhor fez para nós, nele exultemos e nos alegremos, aleluia!” (Sl 118).
Nessa manhã do Domingo da Ressurreição, a Igreja propõe como leitura evangélica o relato de Jo 20, 1 -9. O capítulo 20 de João que primitivamente era o último capítulo deste evangelho contém quatro relatos ou quatro cenas, as duas primeiras se passam diante do sepulcro e duas últimas em uma casa que representa a Igreja doméstica, a casa em que discípulos e discípulas se reúnem. Todas as quatro cenas se passam no domingo. As duas primeiras cenas na madrugada do domingo da ressurreição e diante do túmulo vazio de Jesus, no escuro, ainda antes do sol nascer. Dom Helder Camara dizia que quanto mais escura fosse a madrugada, mais luminosa seria a aurora. O nosso texto diz que Maria Madalena foi ao túmulo e viu que a pedra – lápide que fechava a sepultura – tinha sido removida. O sepulcro, com tudo o que ele significa de escuridão, decepção e fracasso que este lugar evoca, estava vazio.
Se puderem, leiam de novo esse texto do evangelho e observem os verbos de movimento, de caminhada. Quase em cada verso se diz: No primeiro verso diz que Maria Madalena vai, de madrugada, caminhando no escuro para o sepulcro de Jesus. Vê que a pedra tinha sido removida e sai correndo e vai encontrar Pedro. Pedro e o discípulo amado saem e vão ao túmulo. Os dois correm juntos. O discípulo amado corre mais depressa (verso 4), entram no túmulo, veem as coisas e voltam…
Em poucos versos, vão, correm, caminham, encontram, veem e voltam… E nós… Será que estamos dispostos nós também a fazer este mesmo percurso. Caminhar no escuro, arriscar ir até o túmulo que está vazio, nos encontrar, dizer uns aos outros que a morte não tem mais vez e o sepulcro está vazio, a pedra foi removida, ir juntos, voltar….
Hoje, somos convidados/as a nos unir ao espanto de Maria Madalena. Ela vê o túmulo vazio, mas não crê. Vai procurar Pedro e o discípulo preferido por Jesus e diz a eles: “Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram”. O plural que ela usa (não sabemos onde o colocaram) revela que ela representa um grupo da comunidade. É a partir desta realidade que os diversos personagens representativos dos grupos que compõem a comunidade vão se expressar. Pedro e o discípulo preferido vão ao túmulo. Um caminha mas é mais pesado. O outro corre e chega primeiro, mas espera o irmão. Pedro vê que o túmulo está vazio, vê os lençois dobrados, mas não crê. É o discípulo amado que vê o túmulo vazio e crê. Maria Madalena só crerá quando o próprio Cristo Ressuscitado lhe aparecer e a chamar pelo nome: Maria!
Deus aceita estes diversos estágios de fé. O evangelho explica que eles ainda não tinham compreendido a Escritura, conforme a qual Jesus devia ressuscitar. É uma mensagem para nós: precisamos aprender a ler a Escritura de modo a descobrir nela que Deus reinverte a realidade do mundo, subverte as decisões dos poderosos e mostra que a morte está vencida.
De acordo com o evangelho, todos encontram o túmulo vazio. O discípulo amado, ou seja, os cristãos mais místicos chegam primeiro ao túmulo, mas respeitam os outros e esperam uns pelos outros. No entanto, é esse grupo do discípulo amado que vê e crê (Pedro vê, mas ainda hesita). E entretanto, quem encontra o Ressuscitado é Maria no jardim, como a mulher no Cântico dos Cânticos busca e reencontra o Amado. É a mulher que por primeiro descobre o Ressuscitado e o anuncia a seus irmãos.
Em nossos dias, muitas pessoas e comunidades estão vivendo essa caminhada para o túmulo vazio. Insistem em não morrer. Migrantes que correm riscos de vida teimam em tentar viver onde possam ao menos comer e viver como gente. Comunidades indígenas resistem. Lavradores cantam sua esperança. Mesmo perseguidos, as comunidades oprimidas continuam apostando na vida e na caminhada da libertação. Como cantava Emicida retomando a música de Belchior:
“Tenho sangrado demais
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro”.
Para nós, a Páscoa não pode só ser celebrada no recinto das nossas Igrejas e através de Liturgias. É preciso proclamá-la por nosso apoio e solidariedade à luta dos povos originários, das populações de rua e de todas as pessoas e grupos ameaçados de morte e na caminhada de resistência.
Assim, como, na Bíblia, simbolicamente, Adão e Eva, o primeiro homem e a primeira mulher no paraíso, representam o início da humanidade, este evangelho da ressurreição mostra o Cristo Ressuscitado e Maria como o novo casal deste mundo novo que começa. Somos, então, nesta manhã do Domingo da Ressurreição, convidados/as a contemplar os sinais desta aurora nova do mundo, no cuidado com a natureza, criação ameaçada de tantas formas pelo mesmo pecado do mundo que provocou a cruz de Jesus. Somos convidados/as a testemunhar e participar da Páscoa libertadora que Deus inspira e dirige nos povos oprimidos do mundo atual.
Um teólogo luterano (Bonhoeffer) dizia que o Cristo ressuscitado é o Cristo em forma de comunidade. Depende de cada um de nós que nossa comunidade viva esta Páscoa como comunidade renovada e cuja vida é para os de fora e manifesta que Deus atua nos outros. Este foi o mergulho que Jesus fez na realidade do seu mundo. Este é o sentido do batismo (mergulho) que renovamos nesta noite de Páscoa. Esse evangelho nos dá a alegria de nos recolocar nessa caminhada na madrugada, que retoma um novo recomeço da criação – um novo primeiro dia da semana – e refaz dentro de nós a ânsia alegre dessa procura.
Se nos acomodamos nas nossas crenças e certezas, não seremos companheiros desses irmãos que se arriscam em caminhar na madrugada na procura do Bem-amado. Refaçamos em nós mesmos e nos outros esse ardor da procura e nos deixemos tocar pelos sinais da ressurreição, mesmo em um mundo no qual não faltam sinais de morte, mas podemos sim descobrir os lençóis dobrados no túmulo vazio e, quem sabe, um jardineiro pobre nos encontre e como disse o nome de Maria, diga o teu e o meu nome e nós possamos reconhecê-lo: Raboni, Meu Mestre.
Apesar de tudo, o Cristo ressuscitou, feliz Páscoa para vocês, aleluia.
[1] – PAPA FRANCISCO, in https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2019/documents/papa-francesco_20190420_omelia-vegliapasquale.html