Leia a reflexão sobre Marcos 10,17-30, texto do Tomaz Hughes
Boa leitura!
A narrativa de hoje inicia-se com a frase: “Quando Jesus saiu de novo a caminhar”. Novamente estamos na caminhada com Jesus. Uma caminhada que é uma aprendizagem para o discipulado. Uma caminhada que o leva cada vez mais perto a Jerusalém, lugar da crise definitiva da sua vida. Ao longo dessa caminhada, Jesus luta com a incompreensão dos seus discípulos, até dos mais chegados a ele. Como a mentalidade deles era formada pela ideologia dominante, eles tinham dificuldade em apreciar a reviravolta de valores que Jesus e a sua mensagem significavam. Nos domingos anteriores, vimos essa tensão no trato das questões do poder, do divórcio, das crianças. No texto de hoje, Jesus põe em cheque o ensinamento comum sobre a riqueza e a pobreza.
A cena é muito conhecida. Um homem pede orientação sobre como entrar na vida eterna. Em um primeiro momento, Jesus coloca diante dele a exigência conhecida por todo judeu piedoso e ensinada pelas escolas rabínicas: o cumprimento dos mandamentos. O homem, sem dúvida, um praticante piedoso da Lei, sente que isso não é o suficiente, pois é o mínimo. Jesus, então, põe diante dele as exigências do Reino: despojar-se dos bens, partilhá-los com os pobres e seguir Jesus. Isso o homem é incapaz de aceitar. Estava amarrado aos seus bens, pois era muito rico (v. 22). Fez a sua opção. Optou por uma vida “regular” que não exigisse partilha nem despojamento. Em consequência, foi embora “muito abatido”, pois tinha colocado bens secundários acima do bem maior.
Contudo, o centro da narrativa está no debate entre Jesus e os seus discípulos. O Mestre afirma que “é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus!” (v. 25). Muitas vezes, gastamos muita energia em debater o que significa “o buraco da agulha” (quase sempre tentando diminuir o seu impacto!) e deixamos de lado o aspecto mais importante, isto é, a reação dos discípulos! Eles ficaram “muito espantados” quando ouviram isso e se perguntaram: “então, quem pode ser salvo?”. Por que ficaram espantados? O que houve de espantoso na colocação de Jesus? Aqui está o âmago da questão.
O espanto dos discípulos, conforme a mentalidade comum naquela época, era causado pelo fato de que a riqueza era considerada sinal da bênção de Deus. , Enquanto isso, a pobreza era vista como sinal da maldição. Ainda hoje, essa ideia continua presente em certas igrejas ou setores de igrejas. Para eles, quem não iria se salvar era o pobre, pois o rico era abençoado. Aqui é bom lembrar que se trata de “entrar no Reino de Deus”, o que não é sinônimo de salvação eterna. A salvação depende da gratuidade e misericórdia de Deus, e diante de tal mistério só cabe à gente calar-se. O Reino de Deus deve ser uma experiência já existente entre nós, mesmo que não em plenitude, e que significa experimentar os valores do Reino na vida cotidiana. O rico dificilmente entra nesta dinâmica porque normalmente é autossuficiente, atrelado a um sistema classista e injusto e com grande dificuldade para partilhar e para sentir a sua dependência de Deus.
A proposta de Jesus desafia as ideologias, disfarçadas de teologia e espiritualidade, que veem a riqueza como sinal da bênção de Deus. A proposta dele não é riqueza acumulada, mas riqueza partilhada. Não é o egoísmo, mas a solidariedade e a justiça, de modo que todas as pessoas possam ter o suficiente. O texto deixa claro que viver esta proposta tem consequências, pois quem é do projeto deste mundo fatalmente promoverá a perseguição. Quem segue Jesus na prática da solidariedade, encontra uma felicidade mais duradoura, mas com perseguição. Porém, já vive a certeza da plenitude do Reino que virá (vv. 29-31).