
Autor: Irmão Marcelo Barros
Neste domingo que abre a Semana Santa, a liturgia faz uma justaposição de elementos de duas celebrações em uma única. Começa pela bênção e a procissão de Ramos, oriundas da Igreja de Jerusalém. Depois, segue com a missa com os textos do Domingo da Paixão, herança da antiga Igreja de Roma.
No Brasil, a bênção e procissão de ramos é muito popular, já que a maioria das pessoas gosta de procissões e quer levar o ramo bento para colocar nas portas ou paredes da casa como sinal de bênção. Atualmente, com a revalorização da espiritualidade ecológica, devemos tomar cuidado para que o rito de ramos não provoque corte leviano de árvores. Ao contrário, deve representar a ocasião para a valorização das plantas e dos ramos como sacramentais do amor divino. Nas tradições afro-brasileiras, os cultos de tradição Yorubá celebram Ossaim, o Orixá das folhas e das matas e há vários ritos nos quais as folhas são fundamentais. No Candomblé se diz: “Cosi Ewé, cosi Orijá” (Sem folha, não há Orixá). É importante que a bênção e a procissão de ramos possam dialogar com essas culturas.
Com esse espírito de comunhão com o nosso povo, meditemos o evangelho de Ramos, nesse ano, conforme Lucas19, 29- 40. Nos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, Jesus vai a Jerusalém uma única vez e é para celebrar a Páscoa e dar a sua vida. Talvez por isso, esses evangelhos resumiram em uma narrativa única fatos e momentos que provavelmente ocorreram em momentos diferentes.
Os evangelhos contam a entrada de Jesus em Jerusalém com o grupo de peregrinos e peregrinas que vinham à cidade para celebrar a festa com ramos nas mãos e cantando salmos como o 118 (Hosana, bendito o que vem em nome do Senhor). Esse tipo de procissão e inclusive com este texto fazem parte dos costumes da festa das Tendas que se realiza cada ano em setembro e não na Páscoa que se dá em abril. A festa das Tendas recorda a caminhada do povo hebreu no deserto, na esperança da libertação. A festa tem como centro a esperança messiânica, na perspectiva de que a libertação não tenha sido só do passado, mas se atualize em libertação definitiva.
No evangelho de Lucas, Jesus se aproxima de Jerusalém pelas aldeias de Betfagé (a casa do figo verde) e de Betânia (a casa do pobre). Entra na cidade pelo Monte das Oliveiras que, nas profecias do primeiro testamento, é visto como o local da manifestação do Messias no dia da vitória.
A comunidade de Lucas é de um ambiente grego que não conhece mais os costumes judaicos da festa das Tendas. Por isso, quando conta a entrada de Jesus em Jerusalém não alude mais a ramos que aquela pequena multidão de peregrinos carregava nas mãos, como era costume na festa das Tendas. Esse evangelho se centra mais no fato de que o povo peregrino que entra na cidade com Jesus o aclama como Messias (Cristo) que vem realizar a esperança da libertação do povo. Isso dá à cena um conteúdo político que faz com que os sacerdotes e escribas fiquem com medo e peçam a Jesus para mandar o povo se calar; coisa que Jesus não faria nunca.
Atualmente, ninguém de nós quer sacralizar movimentos e manifestações populares. Marchas, passeatas e manifestações em praça pública devem ser laicais, pluralistas e autônomas. No entanto, nós que cremos, reconhecemos as manifestações populares de resistência e de esperança como sinais inspirados pelo Espírito e correspondem ao projeto sagrado de transformar o mundo em espaço de comunhão libertadora.
Hoje, para as paróquias e dioceses, fazer a procissão de Ramos é fácil. É um símbolo que deixou de ser perigoso. Hoje, ninguém vai fazer como aqueles escribas que, com medo da repressão política, pediram a Jesus: manda os discípulos se calarem. Mas, precisamos levar Jesus à nossa realidade, com comunidades pobres, ameaçadas em seus direitos de moradia, com projetos urbanísticos pensados para a classe rica e sempre à custa do deslocamento e da marginalização dos mais pobres. Devemos levar Jesus para a nossa luta pacífica pela Ecologia Integral como nos pede esse ano a Campanha da Fraternidade.
A situação que vivemos no Brasil e no mundo é pesada e dolorosa. Também nas Igrejas, a realidade é difícil. Predomina um Cristianismo que parece mais herdeiro dos religiosos do templo de Jerusalém do que da fé dos discípulos e discípulas de Jesus que o seguem na sua peregrinação de esperança. Reproduzir, hoje, a procissão de Ramos e carregar Jesus para dentro de nossas comunidades é optar pela esperança, seja como for e mesmo sem nenhuma razão racional e sim pela teimosia da fé messiânica.
Dom Helder Camara afirmava que quando sentia a tentação de se julgar importante, meditava consigo mesmo que era apenas o burrinho que carregava em seu dorso Jesus para levá-lo aonde ele precisa ir. Nós todos e todas somos aquele burrinho que esse evangelho que meditamos hoje insiste em que Jesus manda desamarrar. Neste breve texto, o verbo desamarrar ocorre quatro vezes. Que possamos nós sermos desamarrados e nós mesmos desamarrar aqueles e aquelas que possamos desamarrar porque o Senhor precisa deles. É a única vez no evangelho de Lucas que esse termo Senhor, termo que designa Deus, é usado pelo próprio Jesus como forma de falar de si mesmo. Que a celebração dessa Semana Santa que começa hoje e a Páscoa nova que celebraremos nos desamarre de tudo o que precisamos ser libertados e possamos servir melhor e de forma libertada ao Senhor.
Carregar Jesus para dentro da nossa realidade significa trazer para as pessoas que sofrem a solidariedade que testemunha que o Amor Divino está com elas para ajudá-las a vencer as lutas da vida. Temos de testemunhar que é possível conviver como irmãos e irmãs, sem competição e sem medo uns dos outros. É organizar a vida na cidade, de forma que todos os seus moradores e moradoras tenham consciência de cidadania ecossocial e tenham seus direitos reconhecidos. Isso é fazer dessa Páscoa testemunho de solidariedade humana e que realmente colabore com a transformação do mundo.
Junto com a querida amiga, a compositora Cecília Vaz, nossas comunidades cantam:
Se calarem a voz dos profetas
As pedras falarão
Se fecharem os poucos caminhos
Mil trilhas nascerão
Muito tempo não dura a verdade
Nestas margens estreitas demais
Deus criou o infinito pra vida ser sempre mais
É Jesus este pão de igualdade
Viemos pra comungar
Com a luta sofrida de um povo
Que quer, ter voz, ter vez, lugar
Comungar é tornar-se um perigo
Viemos pra incomodar
Com a fé e a união nossos passos um dia vão chegar
O Espírito é vento incessante
Que nada há de prender
Ele sopra até no absurdo, que a gente não quer ver
Muito tempo não dura a verdade
Nestas margens estreitas demais
Deus criou o infinito pra vida ser sempre mais
No banquete da festa de uns poucos
Só rico se sentou
Nosso Deus fica ao lado dos pobres
Colhendo o que sobrou
Muito tempo não dura a verdade
Nestas margens estreitas demais
Deus criou o infinito pra vida ser sempre mais
O poder tem raízes na areia
O tempo faz cair
União é a rocha que o povo usou pra construir
Muito tempo não dura a verdade
Nestas margens estreitas demais
Deus criou o infinito pra vida ser sempre mais