Fazendo ecoar o dia nacional de Luta dos Povos Indígenas, partilhamos o artigo de Roberto Liebgott, sobre as religiosidades indígenas do Brasil.
Cada povo tem sua própria religião. No Brasil, há 334 povos, falantes de 242 línguas, com costumes, crenças, tradições, organizações políticas e sociais diferentes. Essas características e composições étnicas tornam nosso país plural, intercultural e interreligioso.
Quando ouvimos as falas de lideranças indígenas, especialmente as espirituais, temos a dimensão das distintas realidades e religiosidades dos povos.
Laurinda Gomes, liderança espiritual dos Mbya Guarani, uma Kunhã Karai como é denominada, ressalta que os Mbya têm uma relação com Ñhanderu, um de seus Deuses, de forma cotidiana, ou seja, Ele não é lembrado ou celebrado apenas em rituais ou festejos, mas em todos os momentos da vida, durante o sono, nos sonhos, no amanhecer, nas brincadeiras, nos afazeres da aldeia, nas relações com pessoas ou animais, no trabalho de roça, no plantio, cultivo e colheita. Ela ainda ressalta que, para eles, os vínculos com os ancestrais, seus antepassados, que passaram por esta terra, são perenes, eternos e os laços não se desfazem, portanto, compõem o caminhar pela terra sem mal. Espiritualidade e ancestralidade não se desligam, mantém vínculos e relações nas lutas, nos sofrimentos, nas alegrias e nas tristezas.
Para a liderança Kaingang, Erondina Vergueiro, Deus, Tupé, é presença e esperança. A vida faz-se por Ele, que se torna visível na bondade, nas relações, nos ritos e cultos. Um Deus que está presente nas demais religiões também, fazendo um caminho de sincretismo.
Aqui são dois exemplos de falas femininas sobre seus modos de perceber e se relacionar com Deus. Na concepção de Laurinda, Deus é caminhar juntos, na outra visão, há um Deus presente nos cultos, ritos e bondade.
São, por óbvio, duas simplificações, porque as cosmovisões indígenas são amplas e bem mais complexas do que esta sintetização, que nos serve apenas para mostrar as diversas formas de pensar e viver Deus, que não é apenas Um, mas múltiplos, há Deus para cada Povo, Deuses, Deusas, dentre elas a Ñ Ñahadeci, do mundo espiritual Guarani.
Em todos os povos indígenas, as espiritualidades, as crenças e as ancestralidades são reais, cultivadas, cultuadas e a vida só se faz por conta dessas relações que transcendem a matéria e a razão.
As religiosidades indígenas, suas espiritualidades e ancestralidades constituem-se em núcleos indissociáveis das resistências e esperanças dos Povos Indígenas no Brasil. São elas que alimentam o contínuo caminhar pela defesa dos direitos e no combate às violências, como aconteceu em abril de 2022, em Brasília, no Acampamento Terra Livre. Lá estavam milhares de lideranças em marcha, cobrando do governo o cumprimento da Constituição Federal, aquela carta superior que lhes assegura direitos fundamentais à terra, às políticas públicas, ao meio ambiente protegido e o respeito aos modos de ser e viver dos povos. Lá, pessoas indígenas se encontram contra os PLs da morte – o 191 e o 490 – porque aniquilam com a possibilidade de os povos terem terra demarcada e serão, em definitivo, afastados de seu usufruto exclusivo, como prevê a Lei.
Religiões, terra, vida, luta, resistência, espiritualidades, ancestralidades são palavras-chave para se pensar um mundo do Bem Viver.
Porto Alegre, RS, 07 de abril de 2022.
Roberto Liebgott
Cimi Sul, Equipe Porro Alegre.
O Mito da Criação
No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia; as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas. (Gn 1,1-2)
O mito bíblico da criação, relatado em duas versões no livro do Gênesis, é apenas uma maneira de explicar e entender a existência na terra. Outros povos têm seus próprios entendimentos. Aqui vamos trazer os relatos sagrados da criação, narrados por povos originários do Brasil, tão sagrados quanto os textos bíblicos e, muitos deles, bem mais antigos.
Mito da Criação do Povo Karajás
No início dos tempos, quando foram criados pelo Ser Supremo KANANCIUÉ – , os Karajá eram imortais. Viviam felizes como peixes aruanãs. Não conheciam nada que não fosse dos rios e das águas. Não conheciam o Sol, nem a Lua, nem as plantas. Nem animal algum que não fosse dos rios. No fundo do rio onde viviam, havia um buraco pelo qual vinha uma luz que os fascinava. Essa luz ressaltava as cores das escamas e de tudo que existia por perto. Quando se aproximavam daquele buraco, ficavam curiosos. Tentavam ver com ansiedade o que era aquilo. Por causa da luminosidade, não conseguiam divisar o que existia além do buraco. Como seria do outro lado? Perguntavam-se. Mas o Ser Supremo havia proibido que entrassem ali. Senão, perderiam a imortalidade. E apesar da tentação, eles obedeciam fielmente.
Certo dia, um jovem Karajá, um aruanã mais audacioso, ousou e foi ver o que existia do outro lado daquele buraco luminoso. Ficou surpreso quando chegou às areias brancas do rio Araguaia e descobriu encantado um mundo maravilhoso, totalmente diferente do seu. Uma paisagem deslumbrante. Viu o céu de um azul profundo com um Sol radiante, iluminando e aquecendo a natureza. Pássaros multicoloridos misturavam-se no ar com muitos matizes. Escutou a música do canto das araras, periquitos e sabiás. Muitos animais estavam em paz, um do lado do outro: tamanduás, onças, cutias. Nas campinas, flores perfumadas. Nas florestas, árvores carregadas de frutos. O jovem Karajá andou por essas maravilhas até o anoitecer, quando, então, descobriu outro cenário ainda mais bonito: a Lua despontava prateada, iluminando as montanhas ao longe. Constelações de estrelas iluminavam o céu. Ele passou a noite deslumbrado até ver renascer o Sol no horizonte.
Resolveu voltar ao buraco luminoso, descrever para seus irmãos e irmãs peixes tudo que tinha visto. Com os olhos cheios de beleza, contou o que tinha acontecido e o que tinha observado: – Passei pelo buraco luminoso, descobri um mundo que nunca havia imaginado e que vocês também não podem imaginar. Com alegria no coração, contemplei o Sol e os animais. Os campos e as florestas. Sob a luz da Lua, vi as montanhas e muitas estrelas. Escutei música vinda dos pássaros e dos riachos. Vamos todos até lá? Todos os seus irmãos Karajá, mesmo sem entender tudo que ouviram, quiseram logo acompanhar o jovem afoito. Mas os mais experientes, os anciãos, disseram com grande sabedoria: – Irmãos e irmãs, temos que respeitar nosso Criador, que nos quer bem e nos fez imortais assim como Ele. Vamos falar com Ele e Lhe pedir a permissão. Todos os aruanãs concordaram e assim fizeram. Depois de ouvi-los, o Criador Kananciué – respondeu, com um pouco de tristeza por causa da desobediência do jovem: – Entendo que queiram transpor o buraco luminoso, que os levará deste mundo a outro de cores e beleza. Lá poderão contemplar a majestade do Sol, o esplendor das estrelas, a suavidade da Lua. Descobrirão flores, frutos e animais. Poderão se divertir e se deliciarem com as águas claras do rio Araguaia e suas areias brancas. Dançar ao som do canto dos pássaros. Mas revelo a vocês o que não sabem, nem veem. Toda a beleza naquele mundo é efêmera como a borboleta das águas que conhecem, que nascem hoje e desaparecem amanhã. Os seres de lá não são como vocês: nascem, crescem, envelhecem e caminham para a morte. São mortais. Vocês ganharão a liberdade, mas perderão a imortalidade. A decisão é de vocês. O que decidem? O que escolhem?
Houve um grande silêncio. Todos olharam para o jovem que descobrira o mundo da liberdade. Todos estavam fascinados com a possibilidade de viverem a beleza, confirmada pelo Ser Supremo – Kananciué . Então, responderam: – Sim, Pai, queremos ir viver no paraíso encantado dos mortais. O Ser Supremo falou com eles pela última vez: – Aceito a decisão de vocês, porque acima de tudo prezo a liberdade. Vocês trocarão a imortalidade pelo dom precioso da liberdade. Saibam que quando passarem por aquele buraco, vocês serão mortais, mas totalmente livres. Não deixem que lhes roubem a liberdade. E todos aqueles aruanãs passaram entusiasmados pelo buraco luminoso para chegar ao mundo da beleza efêmera e alegrias finitas. Até hoje os Karajá vivem naquele paraíso, às margens do rio Araguaia. Concentram-se, principalmente, na ilha do Bananal. Tiveram a coragem de renascer como seres de liberdade, o que continuam sendo até hoje.
FONTE: bibocaambiental.blogspot.com/2017/10/criacao-do-mundo-algumas-lendas.html 2/703/05/22, 21:46 BIBOCA AMBIENTAL : CRIAÇÃO DO MUNDO – ALGUMAS LENDAS INDÍGENAS BRASILEIRA