As Campanhas da Fraternidade da Igreja Católica, que existem desde o de 1964, e a partir do Ano 2000, com a virada do Terceiro Milênio, a cada cinco anos das Igrejas Cristãs que compõem o CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs – constituem-se no lugar e na ação mais proféticos da Igreja nos últimos 60 anos. E por quê assim? Porque talvez seja o único momento onde a Igreja diz o que precisa ser dito e não o que agrada aos ouvintes. Inclusive, causando perseguições e ofensas, tanto à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB como às lideranças pastorais que a fazem acontecer no território brasileiro. As Campanhas da Fraternidade mantêm vivas e atuantes as duas dimensões que caracterizam a profecia: o anúncio e a denúncia.
Estas três duplas de palavras presentes no título deste artigo – Amizade Social; Diálogo Amoroso; e Igreja Sinodal – transmitem um modo de viver – O Bem-Viver – como utopia das Comunidades e dos Povos Andinos. Nada além, no entanto, da proposta de Jesus de Nazaré, dita pela comunidade Joanina: “Eu vim para que todos os homens e todas as mulheres tenham vida e a tenham em abundância” (Jo, 10,10). Nós, homens e mulheres deste século XXI, não podemos aceitar, por exemplo, a tarefa de “papagaios” repetindo ao pé da letra a formulação da comunidade que escreveu o Quarto Evangelho, no início de primeiro século da era cristã. “Eu vim para que os homens tenham vida e a tenham em abundância”. São as mulheres que são assassinadas e vilipendiadas em sua dignidade humana; são os membros da comunidade LGBTQIA+ – mulheres e homens – que são estigmatizados, violentados e martirizados, por serem o que são, por Deus os ter feito assim: diferentes dos héteros. Apenas isso. São os negros e as negras – homens e mulheres – que na visão predominante da sociedade atual, “podem ser assassinados”, por serem do jeito que Deus quis que eles sejam: negros e negras. Nós precisamos de uma nova hermenêutica, inclusive para que a Campanha da Fraternidade de 2024 – Fraternidade e Amizade Social – cumpra os objetivos propostos.
E você que está lendo este meu texto, talvez esteja dizendo: Diálogo Amoroso não é redundância? Sim, eu lhe respondo, mas Amizade Social também, não é? Igreja Sinodal, então, o que dizer? A Campanha da Fraternidade deste ano de 2024, parece ter como um de seus primeiros desafios, nos alertar para os paradoxos que as redundâncias querem denunciar na Igreja. Afinal, o que significa “Igreja em Saída?” ou ainda, “Pastorais Sociais?”, o que seria uma pastoral não social, ou uma Igreja sem saída? Aliás, “O Diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu”. (FREIRE, 2006, p.91). E sobre o amor, “Somente com a supressão da situação opressora é possível restaurar o amor que nela estava proibido. Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo”. (ibidem, p. 92). Nós devemos igualmente atualizar Paulo Freire, dizendo, homens e mulheres.
Eu sei – ou penso que sei – que a estrutura verticalizada, autoritária e pesada da Igreja Clericalista, sloganiza todas estas expressões grávidas de profecia e tem feito isso sistematicamente com as Campanhas da Fraternidade. “Afinal, o empenho dos humanistas não pode ser o de opor os seus slogans aos dos opressores, tendo como intermediários os oprimidos, como se fossem “hospedeiros” dos slogans de uns e de outros”. (Ibidem, p. 99). Por falta de coragem de dizer o que precisa ser dito, e ficando na “confortável” e cômoda posição de dizer o que as pessoas querem ouvir e gostam de ouvir, nós vemos frequentemente a Campanha da Fraternidade exatamente fazendo isto: colando os panfletos com seus slogans sobre os slogans clericalistas. Na esteira do filósofo francês Paul Ricoeur, “E os símbolos que outrora despertavam a imaginação da gente simples, esses símbolos não se tornaram metáforas mortas, tão morta como o pé da cadeira?” (RICOEUR, 2006, p. 226). Acontece que vem sendo uma lógica da prática pastoral, metaforizar as situações limite e não buscar o campo das proposições e da resolução dos problemas sociais.
O primeiro e maior paradoxo a ser reconhecido e enfrentado pela Igreja e pela Campanha da Fraternidade e a oportunidade que se tem, é a relação, o diálogo e a Amizade com as juventudes. A juventude tem exatamente a vocação de rejuvenescer a Igreja e sua eclesiologia. Acontece que, ao invés disso, a Igreja tenta envelhecer a juventude para que esta se adapte à sua senilidade. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – que propõe, organiza, escolhe o tema e define os objetivos da Campanha da Fraternidade, elaborando e divulgando o Texto Base, vive ano após ano o enredo do mito de Sísifo: rola ladeira acima a pesada pedra da profecia, durante o período quaresmal, para, no Domingo de Páscoa alguém empurrá-la ladeira abaixo, com toda a força da estrutura clericalista. Reforço a importância da Campanha da Fraternidade e reafirmo o sentido que ela traz e representa para a Igreja entendida como sendo o povo de Deus, como a define o Concílio Ecumênico Vaticano II, no capítulo 9 (nove) da Constituição Dogmática Lumen Gentium. Estamos transitando entre o slogan e a metáfora e o fazemos propositadamente. Para se alcançar os objetivos da Campanha da Fraternidade deste ano de 2024, será necessário algo diferente. Temos esta disposição?
Entre os desafios que a Campanha da Fraternidade precisa enfrentar, estão: a linguagem, que deve ser enriquecida com as expressões locais e com as contribuições das Inteligências Amorosas de nossa história. Afinal, como desenvolver a oportuna reflexão sobre a Amizade Social, sendo indiferente à Pedagogia Libertadora de Paulo Freire? A Sociologia Amorosa e Humanista de Josué de Castro? À Teologia da Libertação- TdL? Às Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e à Teologia do Primado da Palavra? Ao Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – CEBI e à Leitura Popular da Bíblia – LPB? Às hermenêuticas e as eclesiologias periféricas, sobretudo a feminista e das diversidades? Recordemos para nos ajudar a nos mantermos focados, o Objetivo Principal da Campanha da Fraternidade de 2024. “Despertar para o valor e a beleza da fraternidade humana, promovendo e fortalecendo os vínculos da amizade social, para que, em Jesus Cristo, a paz seja realidade entre todas as pessoas e povos”. (TEXTO-BASE, p. 7).
A atualização hermenêutica da Campanha da Fraternidade, assim como a sua linguagem carece de “Conversão como Conversa Grande, como sabiamente propõe o Frei Carlos Mesters. Podemos interpretar essa Conversa Grande como conversa entre adultos, de modo que uma parte não infantilize a outra. Ainda urge a conceituação atualizada do pecado. “(…) O que o pecado pode fazer quando não o enfrentamos”. (TEXTO BASE, p. 16). A Igreja já tem trabalhado de forma razoável o pecado social, a partir de seu Ensino, talvez tenha chegado a hora de reconhecer o pecado estrutural. A própria estrutura da Igreja é praticante de pecados, inclusive sociais. Quando a estrutura comete o pecado estrutural, no sentido de se preocupar mais com a manutenção de sua estrutura pesada e cara do que com a Evangelização e com o cuidado dos pobres, a Campanha da Fraternidade, por exemplo, não acontece.
Em grande parte, a resistência e por vezes a rejeição das paróquias e de parcela significativa dos párocos, se deve a este apego excessivo ao poder e ao ser servido. Trata-se da urgência de uma mudança de mentalidade pastoral na Igreja. Por isso, “(…) Essa mudança pastoral não será atingida só com programas e normas pastorais, se não houver uma autêntica conversão de todos, clero e leigos, ricos e pobres, modernos e originários ao Evangelho de Jesus de Nazaré (…)” (CODINA, in BRIGHENTI & ARROYO, 2015, p. 126). Como já profetizou a Conferência Episcopal de Puebla (1979), essa conversão começa pelo clero.
O Texto Base da Campanha da Fraternidade deste ano de 2024, na parte I, Ver, é um dos mais difíceis de ser compreendido. Seja pela linguagem excessivamente codificada, escrita para a compreensão de poucos; seja pelas referências conceituais e epistemológicas, fincadas na filosofia grega; seja ainda pela forma genérica e cansativamente repetitiva como se apresenta; um amontoado de informações sem as devidas e necessárias explicações; vê-se uma grande quantidade de temas e de assuntos citados, apresentados e até denunciados, mas sem sujeitos. Quem os pratica? Quem os faz? Por exemplo, no número 52: que bandeiras são estas? Não se pode saber? Não se pode dizer? No número 57, quando fala sobre bancadas: que bancadas são estas? Seriam as bancadas da Bíblia; da Bala, do Boi e da Bola, que atentam contra a democracia e os Direitos Humanos no Congresso Nacional? Parece ser, mas como o texto transita na zona de conforto das constatações, não é possível saber de que ou de quem ele está falando. Numa questão, no entanto, o texto tem a coragem de ser conclusivo. É com relação ao processo deliberado de extinguir as Comunidades Eclesiais de Base – As CEBs de sua linguagem. Ao menos apagar a expressão, omitindo-a dos textos. O clericalismo na sua versão mais ideológica e doutrinária tem pavor das palavras Base e povo. A Igreja povo de Deus sofreu o mesmo ataque por causa do conceito sociológico de povo.
A partir da segunda parte, o Iluminar, o texto se trona compreensível e agradável. Denuncia a “instrumentalização da fé”, (nº 87), embora limitado ao contexto de Jesus, abre o assunto para o que acontece na atualidade. Assim também o faz com “os falsos profetas”, no mesmo número e tão presente em nosso tempo. As referências bíblicas para o aprofundamento da reflexão sobre a Amizade Social, são de muita importância. (Rute 1,16-17; 2,11-12; Filemon 8; 9; 12; João 11;). Cabe às equipes da Campanha da Fraternidades, às paróquias e Dioceses, promoverem encontros de formação e estudos destes textos para que seja feita uma hermenêutica atualizada e promotora da Amizade Social.
A segunda parte do Texto Base continua omitindo as Comunidades Eclesiais de Base, traz a memória das “primeiras comunidades” (At 2,42-2-47; 4,32-37), reencontrando a lucidez e a organização de ideias, tão caras à CNBB. Excelentemente! A expressão profético-revolucionária de Jesus de Nazaré, dita pela comunidade de Mateus, “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8), inclusive eleita como o lema da Campanha da Fraternidade, é motivo de escândalo para muitos. muito os que tentam dá vida a um cristianismo sem Cristo; são muitos os que querem ser filhos de Deus sem precisar ser irmão dos pobres. De modo especial quando estes pobres são também: negros; nordestinos; membros das CEBs; defensores dos Direitos Humanos; ou fazem parte da comunidade LGBTQIA+ e esse comportamento anticristão encontra frequentemente a indiferença, quando não o apoio explícito das administrações paroquias e até diocesanas.
A terceira parte, por sua vez, comete alguns deslizes que, embora se diga que o que abunda não faz falta, neste caso, pode atrapalhar ou confundir. Também a sabedoria popular diz que tudo demais é veneno. E é exatamente nesse ponto que se encontram as predaras de tropeço. Primeiro, continua omitindo as Comunidades Eclesiais de Base, o que é sintomático. Segundo, se em outras Campanhas da Fraternidade ouvia-se falar de haver pouco espaço para as ações concretas, este ano parece haver um exagero. Se entendermos as sugestões como alguma forma de prioridade, realmente não há prioridade. São dezesseis (16) sugestões para alargar a Tenda Pessoal; são vinte e seis (26) sugestões para alargar a Tenda Comunitário-Eclesial; e treze (13) sugestões para alargar a Tenda Social.
O que vai demonstrar até que ponto se levará a sério esta Campanha da Fraternidade e este tema tão atual, tão importante e relevante para a Igreja nesse contexto pós-pandemia, pós-golpe e de reconstrução da democracia e das políticas públicas, será o número de grupos de estudo criados nas paróquias e nas dioceses, para o estudo da Palavra, para o estudo do texto e para o seu aprofundamento temático a partir de outras produções e publicações correlatas.
[1] João Ferreira Santiago. Teólogo, Poeta e Militante. Doutorando em Teologia pela PUC-PR. Coordenador Estadual do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – CEBI-PR; contribui na Campanha da Fraternidade na Arquidiocese de Curitiba; é membro das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs; colabora com o Conselho Nacional de Leigos e Leigas – CNLB; é autor do Livro “Hermenêutica, Eclesiologia e Teologia Pública”, pela Editora Freitas Bastos, entre outros.