Confira o artigo da autora Nancy Cardoso*.
Vou evitar falar de modo muito geral sobre religião e sobre democracia. Um pouco de história é necessário. Somos herdeiras e herdeiros de um projeto de expansão imperial e colonial do século XVI que reforçou estruturas geradoras de desigualdade que ainda hoje – no século XXI – se mostram ativas: capitalismo, racismo e sexismo. São estruturas persistentes que garantem privilégios e estratificação que os ordenamentos políticos posteriores tocaram de modo insuficiente, parcial e contraditório. Na América Latina em geral e no Brasil em particular a ordenação democrática é um verniz superficial que muitas vezes mais esconde do que revela, mais ornamenta do que viabiliza a circulação de poder.
A “democracia” muitas vezes significa um padrão de equivalência com sistemas ideais norte-atlânticos, mantendo o sujeito ocidental/europeu como o critério para a avaliação de processos políticos em cenários de pós-colonialidade e/ou neo-coloniais. Isto é verdade para todos os processos políticos fora do eixo norte-atlântico. Verdade é também que em nome da “democracia” as potências ocidentais norte-atlânticas interferem e interrompem processos que não se espelham no modelo “original”.
Prefiro falar de radicalização da democracia. Aprofundar a democracia que temos pode significar reforçar os impasses da democracia liberal representativa. Reconhecer que nosso projeto de sociedade sempre foi de subalternidade e, as tentativas e alternativas pós-colonial e de-colonial, sempre encontraram feroz resistência da política real – a da propriedade, patrimônio e exclusão – através de golpes e violência contra os modos de organização e participação popular.
Nas palavras de Quijano: a cidadanização, a democratização, a nacionalização não podem ser reais a não ser de modo precário no modelo eurocêntrico de Estado-nação.
A religião jogou e joga papel importante neste cenário. O cristianismo foi e é agência de colonialidade. Fomos mal evangelizados porque evangelizados à força e as relações mantidas de “religião” com o estado nunca foram reformadas ou alteradas. Foram feitas emendas. Foi usado um verniz de estado laico. Mas no Brasil o cristianismo nunca deixou de ser religião do estado e, por isso mesmo, um dos elementos de reprodução da subalternidade entre nós.
- Aprofunde a leitura:
Fontes e caminhos ecofeministas
Roteiros para estudo bíblico sobre água – profecia e religião
Remover pedras, plantar roseiras, fazer doces – por um ecossocialismo feminista
Este olhar crítico – e autocrítico – sobre o cristianismo e suas relações de poder é vital para qualquer tentativa de radicalização da democracia. Os agentes das hierarquias não aceitam este processo de crítica, o que consideram uma relativização de suas verdades absolutas. Neste sentido a grande maioria das expressões cristãs entre nós acredita que democracia demais atrapalha o absoluto da fé e seus privilégios. A disputa pelos espaços políticos de representação revelam esta voracidade das hierarquias em manter seu status, mantendo o modelo de sociedade desigual e violento. A voracidade da bancada evangélica é aquela de querer ser e ter todo o status que a igreja católica romana sempre teve.
O modo de lidar com isso é o de radicalizar a democracia, enfrentando todos os mecanismos de desigualdade. O cristianismo vai ter que aprender a ser uma religião entre outras. Entre a democracia que temos (tida como universal mas mantida pela desigualdade e subalternidade) e a democracia que queremos (pluri-versal, que garanta modelos locais de modo de vida e de participação) a religião também precisa respirar a diversidade e a pluriversalidade.
Religiões de matriz africana
Teologias cristãs
As teologias cristãs se não assumirem o ponto da autocrítica continuam sendo reforço de desigualdades históricas e estruturais. Sem esta auto reflexividade crítica toda teologia e toda leitura da bíblia vai continuar sendo elemento de normalização do cristianismo como “bagagem cultural” do modelo de sociedade capitalista, sexista e racista. Entre nós o esforço da teologia da libertação foi e continua sendo expressão contemporânea desta autocrítica fundamental. As igrejas não são democráticas, continuam convivendo com esquemas de poder vincadas por privilégios, hierarquias e sem circulação de poder. As igrejas não são um espaço de democracia! Por isso a autocrítica é urgente e essencial. Para isso é preciso libertar a teologia!
Aqui também o caráter pós-colonial e de-colonial é importante. Uma libertação da teologia que já não toma as medidas dos grandes autores e seus sistemas como modelo a ser copiado, ou interlocutores indispensáveis da tarefa teológica. As teologias entre nós continuam a ser sexistas e racistas porque não desistiram de ser expressão de poder e não se abriram ao léxico das lutas populares. Continuam a ser reforço do colonialismo/imperialismo do conhecimento e da linguagem.