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Para salvar a humanidade do desastre: “o bem viver”

por Ivo Lesbaupin*

O Bem Viver pode servir de plataforma para discutir, consensualizar e aplicar respostas aos devastadores efeitos das mudanças climáticas e às crescentes marginalizações e violências sociais. Pode, inclusive contribuir com uma mudança de paradigmas em meio à crise que golpeia os países outrora centrais

O “bem viver”

“Bem viver” é uma concepção de vida proveniente dos povos indígenas andinos, presente tanto nos Aimara (Bolívia) quanto nos Quechua (Bolívia e Equador), e também dos povos Guarani (Brasil, Paraguai): Suma Qamaña em aimara, Sumak Kawsay em quechua, Teko Porã em guarani. Não tem uma definição única, mas podemos indicar alguns elementos comuns. Segundo esta concepção, não existe de um lado o ser humano e de outro a natureza, mas todos – seres humanos e demais seres – fazem parte da natureza. Com ela devemos viver de forma harmoniosa:

“para a perspectiva do Viver Bem, a natureza não é um objeto; não é uma fonte de recursos e matérias primas; é um ser vivo. Esta dimensão ecológica da realidade reconhece que a natureza é indivisível e intrinsecamente imbricada à vida dos seres humanos; somos parte da natureza” (Isabel Rauber) .

Num artigo intitulado “Nem melhor, nem bem: viver em plenitude”, Esperanza Martinez diz: “Só o fato de nos atrevermos a pensar que a meta é a plenitude e que a plenitude supõe relações de harmonia, não de hostilidade; condições de saúde, não de doença; relações de solidariedade, não de competição, nos leva a repensar a nós mesmos com a natureza e a superar a ideia cultivada na modernidade e santificada pela ciência ocidental (a religião) de que a natureza é algo hostil, que devemos dominar para sobreviver, e que aqueles que sobreviverão sempre serão os mais fortes” .

Duas coisas são centrais no bem viver: o sentido de pertença à natureza e o sentido da comunidade.

Para o economista equatoriano Pablo Dávalos, “essa noção foi recriada a partir de uma confirmação das vivências ancestrais dos povos indígenas e de sua forma de construir sua socialidade e sua relação com a natureza. Na recuperação de suas formas ancestrais de convivência, os povos indígenas encontraram, de um lado, as formas políticas de resistência ao capitalismo e à modernidade e, de outro, as alternativas para esse mesmo sistema capitalista. (…)

O Sumak Kawsay propõe, além disso, uma forma de relacionamento diferente entre os seres humanos, na qual a individualidade egoísta deve se submeter a um princípio de responsabilidade social e compromisso ético, e um relacionamento com a natureza no qual esta é reconhecida como uma parte fundamental da socialidade humana. (…)

A noção do Sumak Kawsay quer tornar a sociedade responsável pela maneira através qual produz e reproduz suas condições de existência, a partir de uma lógica marcada pela ética, na qual as situações particulares formam o interesse geral, e o bem-estar de uma pessoa não se constrói sobre os demais, mas sim baseado no respeito aos outros, isto é, meu bem-estar pessoal depende do bem-estar dos demais” .

Priorizar a vida (não apenas a vida humana)

Em seu livro sobre o “bem viver”, Alberto Acosta afirma: “Com sua proposta de harmonia com a Natureza, reciprocidade, relacionalidade, complementariedade entre indivíduos e comunidades, com sua oposição ao conceito de acumulação perpétua, com seu regresso a valores de uso, o Bem Viver, uma ideia em construção, livre de preconceitos, abre as portas para a formulação de visões alternativas de vida. (…)

O Bem Viver, sem esquecer e menos ainda manipular suas origens ancestrais, pode servir de plataforma para discutir, consensualizar e aplicar respostas aos devastadores efeitos das mudanças climáticas e às crescentes marginalizações e violências sociais. Pode, inclusive contribuir com uma mudança de paradigmas em meio à crise que golpeia os países outrora centrais. Neste sentido, a construção do Bem Viver, como parte de processos profundamente democráticos, pode ser útil para encontrar saídas aos impasses da Humanidade. (…)

Sem minimizar a contribuição indígena, temos de aceitar que as visões andinas e amazônicas não são a única fonte inspiradora do Bem Viver. Em diversos espaços do mundo – e inclusive em círculos da cultura ocidental – há muito tempo se têm levantado diversas vozes que poderiam estar em sintonia com essa visão, como os ecologistas, as feministas, os cooperativistas, os marxistas e os humanistas” .

Por que falamos de “bem viver”? Em primeiro lugar, porque o tipo de desenvolvimento que temos hoje vai nos levar ao desastre. A humanidade está caminhando rapidamente para tornar a Terra inabitável: estamos desmatando numa velocidade incrível por toda parte, seja para vender a madeira, seja para exportá-la, seja para dar lugar a grandes pastagens e plantações. As florestas são fundamentais para garantir a biodiversidade, mas também, entre outras coisas, para termos chuvas regulares e lençóis freáticos abundantes.

Nossa água doce está sendo utilizada em uma quantidade muito acima de sua capacidade de reposição. Além disso, ela está sendo poluída pela falta de saneamento (despejo de esgotos diretamente nos rios), pelos agrotóxicos, pelas indústrias, pela mineração (na qual muitas vezes são usadas substâncias químicas). Nossos alimentos são cada vez mais envenenados pelos pesticidas e herbicidas – o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, à frente dos EUA.

A situação mais séria que estamos vivendo no que diz respeito ao meio ambiente é o aquecimento global – do ar, da água do mar, da terra. É evidente a influência humana no sistema climático – graças ao modo de produção atual – e as emissões recentes de gases de efeito estufa são as mais altas da história. O ar atmosférico e o oceano se aqueceram, os volumes de neve e de gelo nos glaciares diminuíram e o nível do mar se elevou. Desde meados do século XIX, o ritmo de elevação do nível do mar foi superior à média dos dois mil anos anteriores. O aquecimento global é fruto da utilização intensiva dos combustíveis fósseis (petróleo, gás, carvão) – que têm sido a principal fonte de energia na era industrial. O aquecimento provoca as mudanças climáticas a que temos assistido.

Nosso sistema econômico, para gerar lucro, precisa incessantemente produzir e vender. Desenvolvimento, para o capitalismo, é crescimento econômico: o indicador para medir o desenvolvimento é o PIB (Produto Interno Bruto): quanto mais produzir e quanto mais gastar, mais desenvolvido é o país. Mas o PIB não se preocupa com o ser humano: por exemplo, se houver muitos acidentes, o PIB aumenta, porque há mais gastos em saúde. Isto não quer dizer que a população melhorou de vida.

A natureza é considerada como um objeto a ser explorado. O capitalismo não leva em consideração que a Terra é finita, seus recursos são limitados. Alguns desses recursos não são renováveis e, por causa do consumo excessivo, em algum momento vão deixar de existir. Outros são renováveis, mas a velocidade com que estão sendo utilizados e a insustentabilidade de seu uso fazem com que não haja tempo de regeneração.

Caminhos de bem viver

Precisamos redefinir o desenvolvimento não como crescimento econômico (produtivismo-consumismo), mas “como um processo de desdobrar conscientemente os potenciais inerentes a cada um e a todos os seres humanos, indivíduo, família, comunidade, nação, assim como a espécie humana como um todo” (Marcos Arruda).

Se continuarmos organizando a economia como sempre organizamos, produzindo e consumindo sem cessar, utilizando os combustíveis fósseis (petróleo, gás, carvão), o sistema ecológico da Terra entrará em colapso. Além de um certo patamar, o aumento da temperatura (+ de 2º C, por exemplo), provocará mudanças climáticas mais fortes que as atuais: secas intensas ou chuvas excessivas e inundações, temperaturas altas ou baixas demais, perda da capacidade de reposição da água, tornados e ciclones, e assim por diante.

O bem viver nos inspira para pensar novas formas de viver que superem a concepção produtivista-consumista, depredadora da natureza, que leve em conta as exigências e os limites da Terra, que permita extrair dela meios de vida sem destruir as condições de vida. Não se trata de voltar atrás e todos retornarem à vida no campo. Trata-se de se apoiar nos seus princípios de vida para pensar e organizar a nossa vida social em convivência com a natureza e não em confronto com ela, em harmonia entre nós e não em guerra.

Só há um caminho para evitar este desastre anunciado pelos cientistas e reforçado pelo Papa Francisco em sua encíclica “Cuidar da Casa Comum” (Laudato Sí): mudar a forma como fazemos a economia, mudar a maneira como organizamos a sociedade. É possível! Em várias áreas e setores, já sabemos a solução. Por exemplo, no caso da alimentação, podemos abandonar a agricultura à base de agrotóxicos e transgênicos e produzir alimentos saudáveis: é a agroecologia. Em vários lugares do Brasil e do mundo, há regiões onde se pratica a agroecologia e se produzem alimentos orgânicos. O que falta é tornar esta prática uma política pública para toda a agricultura, para todo o país e não apenas em alguns poucos lugares.

Nós podemos – e devemos – substituir a energia produzida com combustíveis fósseis pelas energias renováveis – solar, eólica (ventos), oceânica, geotérmica etc. Veja bem, não basta trocar de energia, é preciso trocar também o modo como ela é feita. A energia tem de estar a serviço da sociedade, da comunidade, das pessoas: portanto, uma empresa não pode entrar numa área determinada e instalar suas torres de catavento às custas do bem estar dos trabalhadores rurais ou dos moradores que vivem aí. Energia é uma serviço público, não é um negócio qualquer: seu objetivo é servir às necessidades das pessoas. Portanto, a localização das torres é algo a ser pensado e discutido com as comunidades.

Nós somos um dos países que mais recebe irradiação solar por ano, praticamente em toda parte. Poderíamos ser o primeiro país em tecnologia deste tipo de energia, não precisamos de mais usinas hidrelétricas, o sol é mais que suficiente para nós. A energia solar permite a instalação em regiões afastadas, isoladas. Precisamos valorizar a descentralização da produção de energia, não construir grandes usinas solares, repetindo o erro dos megaprojetos de usinas hidrelétricas. A energia é um serviço para a sociedade, deve portanto ser regulada pelo poder público junto com os cidadãos/ãs.

Quem resolveu o problema da água no semiárido nordestino? Foi a sociedade civil, foi o esforço dos trabalhadores rurais, com a colaboração de técnicos solidários, com o apoio de inúmeras organizações da sociedade civil, a partir da experiência e da criatividade dos que vivem do trabalho na região. Hoje, o sucesso das cisternas para consumo humano e para a produção e todas as demais tecnologias sociais que são usadas na região, permite enfrentar os períodos de pouca chuva.

Temos de parar de extrair minérios da terra. Um pequeno país da América Central, El Salvador, conseguiu em 2017 uma vitória extraordinária: proibiu a exploração de minerais metálicos. Foi o resultado de uma luta que durou anos dos movimentos sociais com o apoio das Igrejas e chegou a este resultado. Um economista estudioso da questão ambiental considera que nós não temos de extrair mais nada. O que já foi extraído é suficiente: de agora em diante, devemos só utilizar materiais reciclados.

Para mostrar que isto é possível, ele exemplifica que, em 2003, nos Estados Unidos, cerca de 71% de todo o aço produzido provinha da recuperação. “A taxa de reciclagem de aparelhos domésticos nos EUA chega a 90%” (Lester Brown) . Na Europa, esse índice se aproxima de 95%.

Repensar

Precisamos repensar a cidade: a cidade para o bem-estar dos habitantes (e não para os carros). Pensar a construção das habitações de modo que os materiais utilizados sejam poupadores e geradores de energia. É preciso repensar os transportes urbanos, investindo num sistema de transporte misto, diversificado, transporte público – apoiado principalmente nos trilhos (trem, metrô, bonde/VLT) -, e também em linhas de ônibus com vias preferenciais, ciclovias e ruas para pedestres. Incentivar o uso da bicicleta – criando facilidades e oferecendo condições de segurança –, como já existe em alguns países.

Nesta nova concepção, é preciso repensar a própria fabricação de bens e o seu desmonte. A construção dos prédios deve ser de tal modo e com tais materiais que permita, no futuro, quando vierem a ser desfeitos, que os materiais possam ser reutilizados, reaproveitados. Os aparelhos devem ser produzidos de tal forma que possam ser desmontados, e todas as suas partes reaproveitadas. Devem ser feitos de modo a poderem ser consertados em vez de descartados, a poderem substituir apenas uma peça quando esta peça apresentar defeito. Eles devem ser feitos para durar, não para serem trocados em pouco tempo. Há produtos que poderiam ter garantia de dez, vinte anos ou mais, em vez de um ou dois anos.

Conclusão

A continuidade do modo atual de organizar a sociedade e a economia nos levará a catástrofes climáticas e à aniquilação da humanidade. Precisamos redirecionar a economia, para atender às necessidades das pessoas sem destruir as condições naturais que nos permitem viver. Portanto, não é o lucro o objetivo que deve nos orientar, mas a vida. Viver em harmonia entre nós e com a natureza.

Texto de Ivo Lesbaupin, sociólogo e secretário executivo do Iser Assessoria. Publicado pelo Portal das CEB´s, 28/05/2018.

Referências:
Cf. Isabel Rauber, apud http://isabelrauber.blogspot.com, 22/08/2010.
“Nem melhor, nem bem: viver em plenitude” http://www.ihuonline.unisinos.br/artigos/3448-esperanza-martinez
http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/3544-sumak-kawsay-uma-forma-alternativa-de-resistencia-e-mobilizacao-entrevista-especial-com-pablo-davalos.
Todo o número 340 da Revista IHU online é sobre o bem viver: http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/340 .
Alberto Acosta. O bem viver. Uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo, Autonomia Literária, Elefante, 2016, p. 33-34. A concepção do “bem viver” foi incorporada nas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009). É uma iniciativa inédita e muito significativa. Não quer dizer, porém, que está sendo praticada: em ambos os países, já houve conflitos entre governos e alguns povos indígenas por conta da exploração dos recursos naturais.
Tornar real e possível, Petrópolis, Vozes, 2006, p. 216.
Lester Brown, “Mais economia, menos recursos”, 2011 (http://vivapernambuco.com.br/index.php/item/1564-mais-economia-menos-recursos). Ver também sua obra fundamental: Plano B 4.0 – Mobilização para salvar a civilização. 2009 (original em inglês: http://www.earth-policy.org/books/pb4; pode ser baixado em português aqui: http://www.abong.org.br/final/download/plano4.integra.pdf).
Ver as cartilhas: Carlos Mesters e Francisco Orofino. Cultura do bem-viver, partilha e poder. Círculo bíblico sobre Fé e Política. CEBI e Iser Assessoria. 2013; Ivo Lespaupin. Para evitar o desastre: construir a sociedade do bem viver. São Paulo, Abong e Iser Assessoria, 2017, 44 págs. Pode ser baixada aqui: http//:www.abong.org.br/publicações.php

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