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A paixão do Messias Jesus [Enzo Bianchi]

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre as leituras deste Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Isaías 50, 4-7

A primeira leitura contém a profecia sobre o “servo do Senhor”, literariamente o terceiro dos quatro “cantos do servo” no livro de Isaías (cf. Is 42, 1-7; 49, 1-7; 50, 4-9; 52, 13-53,12). É o próprio servo que fala da sua missão: de servo que escuta a cada manhã a servo que anuncia a palavra do Senhor. E isso a um alto preço, até ter que sofrer, sem se defender, os flagelos, os insultos, a tortura e a perseguição, mas sempre conservando a confiança do Senhor Deus, que é fiel e que está ao seu lado mesmo na hora da paixão.

Carta aos Filipenses 2, 6-11

No canto da encarnação do Filho de Deus, Jesus Cristo, Paulo lê este movimento: aquele que era Deus se esvaziou das prerrogativas divinas até assumir a condição do escravo, até viver uma paixão com o resultado da humilhação, da morte ignominiosa na cruz. Mas Deus responde ao abaixamento do seu Filho, que se fez servo, com a exaltação, dando-lhe o nome de Kýrios, Senhor. O que a paixão segundo os Evangelhos narra em um longo relato, o Apóstolo resume em poucas expressões que sintetizam o movimento da nossa salvação no abaixamento/elevação do Filho de Deus, Jesus Cristo.

Mateus 26, 14-27.66

A liturgia deste domingo da Paixão do Senhor, também chamada de Ramos, envolve a leitura do relato da paixão segundo Mateus. O evangelista não nos entrega principalmente uma “crônica”, mas nos fornece a interpretação, que brotou da fé da Igreja, daqueles fatos que constituíram o fim da vida de Jesus, o Cristo.

O evangelho é escrito por aquele que confessa a ressurreição de Jesus e, portanto, lê os eventos antecedentes à luz daquele evento que explica, dá sentido, ilumina a paixão e a morte. Por isso, Mateus insiste no “cumprimento das Escrituras”, dando ritmo ao relato com este refrão: “Como está escrito…”, “isso aconteceu para que se cumprissem as Escrituras…”.

Lendo a paixão segundo Mateus, assistimos, como a multidão convocada, ao processo de Jesus, no qual se confrontam a vontade de Deus e a dos homens, em um drama que é pascal não só pela sua colocação temporal, mas também pela sua dinâmica.

Podemos distinguir o relato em três grandes partes:

– o prelúdio (Mt 26, 1-46);

– o processo religioso (Mt 26, 47-75);

– o processo político, a morte e o sepultamento (Mt 27, 1-66).

No prelúdio, depois do complô (cf. Mt 26, 1-5), lemos como abertura a unção de Jesus por parte de uma mulher anônima em Betânia (casa do pobre), verdadeira introdução à paixão (cf. Mt 26, 6 -13). Derramando óleo perfumado sobre a cabeça de Jesus, a mulher profetiza aquela unção real e sacerdotal que Jesus receberá na cruz. Ela “discerne” Jesus como “o Pobre”, aquele que vai à morte na solidão, no abandono e sem defesa; Jesus aprova o seu gesto, que não é desperdício, mas verdadeiro dom ao Pobre. Não compreender isso significa – como fará Judas (cf. Mt 26, 14-16) – vender Jesus ao preço de dinheiro, porque se estima o valor do dinheiro como mais importante do que a atenção a ser dedicada ao próprio Jesus. Por isso, como Jesus afirma com solenidade: “Em verdade, eu vos digo: por toda a parte, onde este Evangelho for anunciado, no mundo inteiro, também contarão o que ela fez, e ela será lembrada” (Mt 26, 13), o seu gesto de amor.

Segue o relato da ceia (cf. Mt 26, 17-35), que, de acordo com o evangelista, é uma ceia pascal, e justamente nela ocorre a denúncia do pecado do traidor: um dos Doze entrega Jesus, os outros todos fugirão, e Pedro, a rocha, tremendo como uma vara verde, dirá que não conhece Jesus. Essa é a comunidade de Jesus, à qual ele dá o seu corpo e o seu sangue, a sua própria vida. Sim, os convidados daquela ceia são pecadores, infiéis, uma assembleia que nós julgamos como indigna de receber o dom da vida mesma do Senhor. Mas esse dom é para a remissão dos pecados, o cálice é sangue da aliança derramado para a remissão dos pecados, começando por aqueles dos Doze.

Depois da ceia, Jesus desce com a sua comunidade ao Getsêmani, para além da torrente Cedron, no vale abaixo do templo, onde, em uma intensa oração, ele assume até o fim aqueles eventos que já estavam precipitando (cf. Mt 26, 36- 46). Ele poderia ter fugido, renegando o que tinha feito e dito; poderia ter assumido o estilo de quem combate também com a violência, fazendo resistência: em vez disso, opta por viver até o fim fazendo o bem, acolhendo sobre si o mal, em vez de fazê-lo. Essa é a vontade de Deus para todos, para cada ser humano! Portanto, Jesus está pronto, faz dos eventos um ato na sua liberdade e por causa do seu amor. Houve uma luta, podemos dizer que Jesus sofreu novamente a tentação (cf. Mt 4, 1-11), mas, mais uma vez, como sempre, ele colocou o seu destino nas mãos do Pai.

Segue-se a captura na escuridão, por indicação de Judas, através de um beijo, e a firme confissão por parte de Jesus de que o que está acontecendo está de acordo com o que as Escrituras haviam anunciado: agora, mais do que nunca, ele cumpre a vocação recebida (cf. Mt 26, 47-56). Depois, Jesus é conduzido pelo sumo sacerdote Caifás para o processo religioso (cf. Mt 26, 57-68): lá, estavam reunidos alguns escribas e alguns anciãos do povo, convocados às pressas no meio da noite por Caifás. Com esse processo, quer-se condenar Jesus, identificando nas suas ações e nas suas palavras contradições à Lei, blasfêmias contra Deus, traição à comunidade de Israel. Testemunhas compradas intervêm para relatar palavras de Jesus contra o templo, a morada de Deus.

Embora Mateus não nos forneça um relato preciso, uma “gravação”, entendemos que a causa desse processo está toda na identidade de Jesus em relação a Deus. Assim, o sumo sacerdote lhe pede para confessar se ele é o Cristo, o Messias, o filho de Deus. E Jesus respondeu remetendo Caifás às suas palavras e à sua consciência (“Tu o dizes”: Mt 26, 64), mas revelando também que, justamente naquela morte já próxima, haveria a revelação do Filho do homem sentado como Juiz à direita de Deus na glória. Palavras que causam indignação e assustam Caifás, levando-o até a rasgar as suas vestes, sinal de que o sumo sacerdócio que julga Jesus já está acabado, esvaziado.

Em paralelo ao processo religioso de Jesus por parte do sumo sacerdote, há o interrogatório de Pedro por parte de algumas servas, de pessoas anônimas e sem poder. Pedro renega, não reconhece Jesus como Messias sofredor e não consegue nem reconhecê-lo como aquele do qual ele tinha sido discípulo (cf. Mt 26, 69-75). E Judas? Tendo preferido o dinheiro a Jesus, não consegue dar sentido à própria vida e, assim, decide se suicidar (cf. Mt 27, 3-10).

O processo religioso podia emitir condenações, mas não infligir uma pena a Jesus. Por isso, ele é enviado de volta à autoridade política romana, Pôncio Pilatos, naqueles anos governador da Judeia (cf. Mt 27, 1-3.11-26). Para Pilatos, Jesus só é um caso interessante se representar uma ameaça ao poder político de César. Por isso, pergunta-lhe: “Tu és o rei dos judeus?” (Mt 27, 11). Ou seja: “Tu és um concorrente ao poder imperial? Reconheces o poder político de Roma ou o queres para ti?”. Mais uma vez, porém, Jesus não responde com um “sim” ou com um “não”, mas remete Pilatos às suas palavras: “É como dizes, tu fazes essa afirmação, eu nunca a fiz!” (ibid.). Pilatos compreende, então, que Jesus não é um perigo, mas apela às acusações que as autoridades religiosas judaicas moviam contra ele. Mas Jesus não responde, cala-se (cf. Mt 26, 14), com um silêncio que, se fosse escutado, gritaria a verdade com mais força do que qualquer palavra.

Pilatos, então, tenta uma troca entre Jesus e um prisioneiro famoso, um sedicioso, Barrabás, mas as pessoas, incitadas pelos chefes religiosos, preferem a morte de Jesus e chegam a gritar: “Crucifica-o!” (Mt 27, 22). Aqui, o poder totalitário mostra o seu rosto: vendo que o tumulto cresce, tendo compreendido que Jesus não importa nada e não é defendido por ninguém, Pilatos prefere consentir com a vontade da massa, em sua maioria nas garras da vertigem da raiva, do rancor e da violência (cf. Mt 27, 20-26). Mas, antes da execução da condenação, a violência encontra a possibilidade de se desafogar contra um justo indefeso, até o desprezo e a tortura. Jesus é coroado Rei dos judeus, de acordo com a acusação apresentada, e é celebrado em uma paródia: é revestido com um manto escarlate, coroado de espinhos e lhe é dado uma vara como cetro, ícone que os cristãos nunca esquecerão. “Até esse ponto” trataram Jesus, o Filho do homem, o homem vítima da injustiça e do abuso de poder… O processo político se encerra com a entrega de Jesus aos soldados por parte de Pilatos, a fim de que executem a crucificação fora do cidade, no lugar chamado Gólgota (cf. Mt 27, 27-37).

Jesus é crucificado entre dois delinquentes (cf. Mt 27, 38), contado até na morte entre os pecadores, os malfeitores, e a paródia continua com um cartaz que o despreza: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus” (Mt 27, 37), um Messias fracassado, condenado pela autoridade religiosa como blasfemador e pela política como malfeitor, posto em uma cruz, o suplício ignominioso reservado aos escravos e aos malditos por Deus e pelos homens (cf. Dt 21, 23; Gl 3, 13).

Na cruz, Jesus continua ouvindo ultrajes, além do último eco das tentações vividas no início e depois sempre na sua missão (cf. Mt 27, 39-44). Descer da cruz manifestando a sua onipotência divina? Salvar a si mesmo como salvou a tantos outros? Ter fé em Deus somente se o libertar daquele fim? Não, Jesus permanece fiel à sua missão até o fim, por isso faz ao Pai uma última pergunta: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46; Sl 22, 2). Não é uma contestação, mas uma oração, um pedido de luz na escuridão, uma confissão: “Ó Deus, permaneço fiel a ti mesmo naquilo que eu vivo como abandono, teu silêncio, afastamento de ti!”. Nenhum dos presentes pode compreender, mas apenas um centurião pagão, debaixo da cruz, vendo aquela morte, chega a confessar: “Ele era mesmo Filho de Deus!” (Mt 27, 54).

Assim, enquanto a noite cai e o corpo de Jesus é deposto em um sepulcro por discípulos e discípulas (cf. Mt 27, 57-61), em um pagão é gerada a fé em Jesus: naquela morte tão atroz, o centurião vê que Jesus tem esperança, que permanece fiel a Deus, que vive aquele fim como dom, como amor por todos os homens. Aquela morte já começa a se manifestar como ressurreição, como vida, até que, no terceiro dia, se manifestará em plenitude como o grande mistério da Páscoa de Jesus (cf. Mt 28, 1-10).

Fonte: www.ihu.unisinos.br, 07/04/2017.

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