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Emaús. É preciso continuar… [Ademir Munhoz]

Emaús. É preciso continuar... [Ademir Munhoz]
A manifestação foi um sucesso, reunimos 300 mil pessoas na praça principal da cidade. No palanque, revezavam-se líderes comunitários, sindicalistas, políticos comprometidos com as causas populares e artistas, que emprestavam sua arte para a causa de milhões de desempregados e sem terra.

A volta pra casa, como dizia no início, foi difícil. Saí sem dinheiro e perdi o ônibus da comunidade. O pouco que restava era para as compras da semana.

Mas algo estranho e bom aconteceu no retorno. Eu ia a passos rápidos passando calçadas, ruas e avenidas barulhentas da cidade grande, bares cheios de homens de bem, mas entregues ao álcool. Havia também os exploradores de crianças, que as colocam nos faróis para pedir esmola ou vender balas e ficam sentados de longe olhando, controlando, amedrontando os pobres pequenos, que obedecem ou apanham do explorador e também dos pais, se chegar em casa sem dinheiro.

Tu és o único forasteiro que desconhece esses fatos?

Nos meus passos rápidos e pensamentos mais velozes, ainda não me dei conta de que um estranho caminhava ao meu lado. Ele perguntou, curioso, ao me ver de boné vermelho, bandeira do sindicato, camiseta do movimento por emprego: De onde vem o amigo vestido assim? Ao que respondi com outra pergunta: O amigo é de onde, que não sabe da grande manifestação no centro da cidade por terra, trabalho e justiça?

O homem, jovem, de uns trinta e três anos, disse que não sabia o que estava acontecendo e pediu que lhe contasse o motivo da manifestação.

Meu amigo, a alienação que paira na grande maioria do nosso povo é um péssimo sinal. As transformações só acontecem quando a população organizada em movimentos vai às ruas exigir seus direitos.

Mas, quem sou eu pra julgar aquele pobre homem que nem sei de onde vinha. Talvez tenha estado ausente, doente, jogado na rua, excluído de tudo, até mesmo de informação. Então, coloquei-me a narrar um pouco do que sabia e da motivação que me levou à manifestação.

Foi assim que o partido nasceu…

Há 24 anos, vivíamos ainda sob a ditadura militar que governou o país até 1985, nascia um partido, vindo de uma conjuntura de greves de trabalhadores de todas as categorias, de intelectuais envolvidos nas causas populares, de cristãos engajados em pastorais e comunidades eclesiais de base, de sindicalistas, professores, artistas, políticos, exilados que retornavam, donas de casa, estudantes, enfim. Era um partido que trazia no seu nascedouro uma grande esperança: lutar contra a ditadura, contra a desigualdade social, o latifúndio, as grandes fortunas e, principalmente, contra as oligarquias que governavam este país desde os princípios.

Ah, como era bonito ir aos comícios e emocionar-se com os discursos inflamados dos oradores que cuspiam palavras sufocadas no peito por uma ditadura monstruosa, que matou centenas de pessoas que só queriam justiça, liberdade e democracia.
 O partido foi crescendo, terminou a ditadura, elegemos gente como nós para os parlamentos. Elegemos prefeitos e, mais pra frente, governadores. Tivemos um momento muito marcante, antes do fim da ditadura: a luta pelas Eleições Diretas.

Poucos viram em sua vida um movimento como aquele que levou milhões de pessoas para as praças públicas para exigir o direito de votar para presidente e todos os outros cargos. Nos palanques, misturavam-se políticos tradicionais com os mais novos, com sindicalistas e representantes da sociedade organizada.

Vencemos o primeiro golpe

Foi duro aceitar o primeiro golpe: a abertura política se deu, mas as eleições, que marcaram o fim daquele período, foram indiretas. O presidente foi escolhido por um colégio eleitoral. Vencemos o candidato da ditadura, o velhaco ainda anda por aí tentando se eleger. Já tentou pra prefeito, governador, presidente. A gente acha que nem pra síndico de prédio ele consegue.

Mas assim foi. Nossa eleição direta pra presidente só veio se dar em 1989. O partido já tinha prefeitos em capitais importantes e tentava agora levar um trabalhador ao posto máximo da nação. Um sonho que quase deu certo, não fosse um “almofadinha”, governador de um estado da União que foi apresentado pela mídia como Caçador de Marajás. Isto era ótimo, acreditava o povo. A TV mostrava o moço bom mandando embora funcionários corruptos e coisa do tipo. Ah, quanta ilusão, quanta mentira. Como poderia um corrupto afastar os seus. Mas, assim foi e ele virou presidente.

Do mesmo jeito que subiu, caiu

Em pouco tempo, depois de saquear o dinheiro do povo, do pequeno investidor, de abrir o país para a “modernidade”, deixando os importados deitarem e rolarem, apareceu alguém que, até hoje, não se sabe por qual motivo e expôs a grande lama que envolvia aquele bom moço.

O povo foi pra rua, os estudantes pintaram seus rostos com as cores da bandeira e gritaram bem forte: Fora Já! E assim foi. O presidente, pela primeira vez na nossa história, foi cassado e escorraçado do palácio presidencial. Assumiu o vice.

Vou pular essa parte, pois foi mais um período difícil, com uma inflação alta e uma crise galopante. Foram-se vários anos, novas eleições. O partido, que ia crescendo a cada eleição, foi tentando, tentando. Mas veio o período de um governo neoliberal que seguiu a política ditada pelo mercado e pelos credores, deixando mais uma vez o povo à espera de milagres. A inflação, essa se foi, mas como pagamos caro para isso. O desemprego foi só crescendo. A desigualdade aumentando, o abismo entre ricos e pobres, cada vez maior. Era o reflexo da globalização da miséria.

Foram dois governos seguidos nessa subserviência ao capital externo.

O povo não pode mudar isto?

Nesse ponto da conversa, o estranho me interrompeu e perguntou.

– O povo não pode mudar isto?

Continuei minha narração, explicando que o poder econômico e o jogo de interesses são tão fortes que interferem até nas eleições. A vontade do povo é a última a ser ouvida. Mas, o povo também se cansa. Apesar de tudo, muita gente boa, muitos cristãos engajados nunca abandonaram suas lutas. A organização popular continuou mesmo a despeito de tudo, mesmo tendo que nadar contra a maré para sobreviver.

Depois de oito anos, finalmente parecia ter chegado a hora de eleger alguém do novo partido, que já estava com 22 anos. E foi assim. As urnas abertas mostraram que a população queria mudanças e, dentre todos os candidatos, inclusive do governo, o povo escolheu um trabalhador, semianalfabeto, migrante como milhões de outros que abandonaram suas terras em busca da sobrevivência, para governar o país, para governar esperanças, para tirar o país do desemprego, da crise, acabar com o trabalho infantil e com o trabalho escravo. Também para dizer aos banqueiros internacionais que nossa dívida não pode ser paga com a miséria do povo.

– Mas, se isto aconteceu, por que você foi a uma manifestação pedir aquilo tudo que o governo prometeu dar? Interrompia-me novamente o forasteiro pra questionar.

Esperávamos que fosse ele quem redimiria Israel

Sabe amigo, continuei, dá tristeza falar isto, mas, se estamos fazendo manifestações por todo o país mais uma vez, é porque estamos muito longe de conquistar o que queremos. E não é muito: só trabalho, dignidade, comida, terra pra plantar.

O governo chegou cheio de boas intenções, mas não teve coragem de implantar as medidas que sempre defendeu e pelas quais sempre lutou quando fazia oposição aos outros. O pessoal que se instalou no poder, já antes da eleição, meteu os pés pelas mãos pra garantir a eleição. Isto significa concordar com o que estava errado, fazer o que já vinha sendo feito. Aquele enfrentamento com os banqueiros internacionais, nem pensar. Aliás, pagamos mais do que eles querem, abaixamos a cabeça, dizendo amém como todos os anteriores.

Como dói contar tudo isto pra você. Como é triste admitir que nossos sonhos foram por água abaixo e, mesmo vindo de uma manifestação tão grande, tenho que dizer que não acredito nas mudanças, que não acredito nos partidos.

Fica conosco, pois cai a tarde e o dia já declina…

Nesse ponto, eu há estava chegando perto de casa. Convidei meu companheiro de viagem para parar em minha casa e tomar uma água, um café, depois continuaria seu caminho. Não sei de onde veio esta coragem pra convidar um estranho pra entrar em minha casa. A violência está assustadora, desconfiamos de tudo e de todos.

Ele aceitou. Chegamos em casa, fiz um café, arrumei a mesa e coloquei uns pães que sobraram da manhã. Servi, e ele pegou um dos pães, partiu, elevou e agradeceu.
Enquanto comia, aquele estranho disse: Não desanime. Tua luta não será em vão. Eu também assumi tantas lutas, denunciei as injustiças e amparei os pobres, oferecendo-lhes a justiça de Deus. O resto da história você já sabe.

Ele levantou e partiu. Foi no gesto de repartir o pão que entendi de quem se tratava. Foi nas suas palavras que compreendi que nossa luta não pode parar enquanto há miséria, injustiça, desemprego e tudo que impede a gente de ser gente.

 
(Inspirado em Lc 24, 13-35 e na história recente de nosso país)
 
* Publicado originalmente no site do CEBI em agosto de 2005.

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