Enquanto a Prefeitura de São Paulo decreta uma guerra violenta contra a Cracolândia, psicólogos e ativistas e ex-usuários argumentam que a saída está longe do confronto
Falar sobre outras alternativas para a questão da Cracolândia ganhou nova urgência depois que o prefeito de São Paulo, João Doria, anunciou, no dia 21 de maio, a suspensão do programa De Braços Abertos. Desde 2014, o projeto ajudava usuários de crack com iniciativas de resgate social por meio de trabalho remunerado, alimentação e moradia.
Segundo dados oficiais, 88% dos participantes afirmaram ter reduzido o consumo da droga em cerca de 60%, ou, de 42 pedras por semana para 17.
A administração paulistana também quer que pessoas em situação de “drogadição” possam ser internadas compulsoriamente sem a necessidade de uma aprovação judicial individual. O pedido ocorreu em meio a operações policiais e de demolição na Cracolândia.
Tática semelhante já foi usada outras vezes, como em 2012, quando a polícia ocupou a região. Na época, um dos encarregados da operação declarou que o objetivo era causar “dor e sofrimento” para fazer os usuários pedirem ajuda. Tanto em 2017 quanto em 2012, o que a intervenção da polícia causou foi a dispersão de quem vivia ali. “O que aconteceu foi uma quebra muito violenta de um vínculo que vínhamos construindo. Os dependentes estão com medo, e com razão. Não sabemos o que vai acontecer”, explica a psicóloga Laura Shdaior, ex-funcionária do extinto De Braços Abertos e ativista do movimento A Craco Resiste, que luta pelos direitos dos usuários.
Essa quebra representa um retrocesso, pois, segundo especialistas, criar uma relação de confiança com os usuários de crack é o começo mais óbvio para tratar da questão. “O caminho é estabelecer um vínculo. O tratamento tem que fazer sentido para a pessoa”, afirma o psicólogo Bruno Logan, especialista em redução de danos, prática que consiste em minimizar os prejuízos associados ao uso de substâncias psicoativas. Bruno tem mais de 100 mil visualizações no YouTube, no canal RD com Logan, e foi bloqueado três vezes no Facebook, sempre por apologia ao uso de drogas. “Tem essa ilusão de que se a gente não falar sobre o assunto ele não existe”, diz.
“Quem defende internação compulsória não quer resolver o problema, só quer se livrar dessas pessoas. O problema ali é a vulnerabilidade. Não é só a droga. É social. Se você arranca alguém de seu contexto e tranca em uma clínica, é claro que ela não vai se drogar enquanto estiver lá. Mas e depois?”
“É importante compreender que o problema é também social. São pessoas em situação de vulnerabilidade que criaram ali uma comunidade”, diz o psicólogo Maurício Cotrim, especializado na recuperação de dependentes químicos e, ele mesmo, um ex-usuário.
“As pessoas se drogam juntas, estão conectadas umas com as outras. É difícil tirá-las dali e é impossível tirá-las das drogas enquanto viverem ali. Então é uma situação muito complexa.”
E completa:
“Tratar essa questão de forma militarizada é achar que estamos enfrentando um problema de segurança pública e não perceber que a questão ali é de saúde pública. Choca ver uma medida de violência contra pessoas doentes”.
A dimensão social da Cracolândia existe desde o seu surgimento, na década de 90, com pessoas que buscavam fugir da violência dos bairros periféricos se unindo no mesmo espaço físico para usar crack. Essa aglomeração ganhou, mais recentemente, o nome de fluxo. A antropóloga Taniele Rui, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), conta que o termo surgiu para delimitar dois perfis populacionais: “Havia pessoas morando em barracos (na ‘favelinha’) e pessoas concentradas nas ruas, que foram chamando a si mesmas e à sua união espacial de fluxo”. “Em certa medida, o termo estabelece alguma correlação com os fluxos surgidos espontaneamente em festas nas periferias”, completa Taniele.
Daniel Carvalho, ativista do A Craco Resiste, faz a mesma ligação com os bailes funk da periferia, que também são chamados de fluxo, para explicar o termo. “Em alguns aspectos, a Cracolândia se parece com uma festa”, diz. “Além disso, fluxo é um termo interessante porque abarca essa característica de uma população flutuante que se desloca pela região. Na real, a Cracolândia é esse fluxo de pessoas, não um espaço físico.” Essa existência fluida é um dos motivos pelos quais a repressão policial não funciona ali.
Maurício acredita que a redução de danos é fundamental, especialmente no primeiro contato (“Só com uma abordagem de acolhimento é possível construir um vínculo com os dependentes”), mas que não deve ser a meta final. “É ótimo que o sujeito fume menos pedras por semana, temos que investir nisso, mas não podemos abandonar o objetivo de que a pessoa se livre daquela situação, ou corremos o risco de ficar enxugando gelo”, ele argumenta. “A possibilidade da internação compulsória não deve ser descartada, ela pode salvar vidas. Mas é, com certeza, a última opção. Internação não pode ser política pública.”
Não há como, porém, pensar em resolver a questão com um tratamento único, Maurício afirma. “Existem caminhos que funcionam pra um doente que não vão funcionar pra outro. É importante aceitarmos que não existe tratamento unânime”, diz. Nenhum deles, porém, passa pela violência. Bruno Logan resume: “Os usuários querem cuidados e podem decidir parar. Mas para que essa decisão aconteça é preciso respeitar o indivíduo, o cidadão”.
–
Fonte: Texto de Nathalia Zaccaro e Renan Fagundes para Revista Trip, 24/07/2017.
Foto de capa: Tommaso Protti