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E quando os discursos violentos chegam às escolas?

por Ana Luiza Basilio via Carta Educação*

A formação para o pensamento crítico é uma estratégia para escolas e professores blindarem discursos que desrespeitem os direitos humanos

Durante uma de suas aulas de Sociologia para uma turma do Ensino Médio, o professor Ricardo* ouviu de uma estudante: “Pra mim, todo gay e lésbica tinha que morrer”. Minutos antes, o docente falava sobre heteronormatividade e pedia para que os alunos refletissem sobre os direitos dos homossexuais.

A reação do professor foi imediata. “Falei que aquilo era um desrespeito. Não quis deixar margem para que os demais alunos achassem que aquela postura era aceitável. Adolescentes têm uma forte tendência de comportamento em grupo, entendi que o momento era crucial para marcar na memória deles o porquê da conduta não ser aceita”.

O professor conta que recorreu a conceitos sociológicos e referências históricas para “minimizar” o pensamento. “Tem que existir uma correlação de forças na sala de aula construída a partir de uma ciência, de estudo e conhecimento. Temos uma responsabilidade intelectual com o que dizemos”, explica.

O episódio aconteceu ainda no clima das eleições e, para o professor, a situação, atípica em suas aulas, pode ter tido como pano de fundo os discursos proferidos pelo então candidato Jair Bolsonaro (PSL). Ele é autor de frases polêmicas direcionadas às minorias sociais. Se referindo à comunidade LGBT, Bolsonaro já afirmou ser “incapaz de amar um filho homossexual” e que “se o filho começa a ficar assim meio gayzinho, ele leva um coro e muda o comportamento dele”. Negros, quilombolas, indígenas e mulheres também não foram poupados de seus impropérios.

O professor doutor em Ciência da Linguagem, Wander Emediato de Souza, também pesquisador do Núcleo de Análise do Discurso (NAD), da UFMG, fala sobre o poder de alcance do discurso de uma figura pública. “Ele é sempre maior do que os discursos de minorias ou de pessoas que sequer possuem voz em uma sociedade. Há muita gente sem voz, excluída da ordem do discurso, muitos falam por eles, mas eles próprios não possuem direito à fala. Por exemplo, muito se fala em nome do povo e dos pobres, mas eles não possuem canais diretos de expressão”, atesta.

O risco, segundo o pesquisador, é que esses discursos tendem a ser captados pelas mídias, circularem em todos os meios, serem objetos de debate social e também referência para muitas pessoas. Souza afirma que grande parte da memória discursiva de Bolsonaro incita à violência verbal e até física por parte de seus seguidores mais radicais. Crianças e adolescentes não estão livres dessa interferência.

“Os discursos agem sobre nossas representações do mundo, nossa identidade, nossos afetos e nossas relações sociais. Agem também sobre as instituições, seja no sentido de conservá-las, torná-las hegemônicas, ou transformá-las, pela capacidade dos agentes sociais de resistir, através de manifestações discursivas, aos discursos hegemônicos”, explica.

“RIP Democracia, Bolsomito”

Uma manifestação silenciosa levou a professora Mariana*, da área de Ciências Humanas, a pedir demissão da escola particular em que lecionava. Ao entrar na turma do 9º ano do Ensino Fundamental para dar aula após as eleições, a docente se deparou com a seguinte mensagem na lousa: “#RIP Democracia, Bolsomito”. Mariana pediu aos alunos para apagarem a mensagem, solicitação que não foi atendida. “Saí da sala e não voltei mais”, conta.

Dias depois, em um texto enviado para a escola para justificar a sua saída, Mariana reiterou seu papel enquanto docente. “Os meus alunos sempre souberam o que eu penso, porque ensinar Ciências Humanas é estar dentro do campo democrático, nas palavras, nos atos e no conteúdo. Acredito que, por este lugar ocupado, fui o alvo óbvio das provocações e dos confrontos. E eu tratei da melhor forma possível os adolescentes que atacaram estes valores. Diálogo sempre foi minha melhor ferramenta”, escreveu.

Ela também cobrou uma postura institucional por parte da escola. “Vínhamos pedindo uma posição institucional. É necessário circunscrever os adolescentes no campo democrático, delimitar o campo para que a crítica deles não fique sem contorno. Adolescentes precisam disso. Fiz isso isoladamente muitas vezes, e cada vez que o fiz, parecia que eu estava sozinha, e que não era a posição da escola, mas a minha, a posição defendida. Para eles, essa minha defesa da democracia ganhou ares de doutrinação. Lamentável.”, finalizou.

O professor Wander Souza afirma que o silêncio – representado na mensagem escrita na lousa pelos alunos – também é um discurso e às vezes mais eloquente do que a própria fala. E reforça que “as escolas devem agir educacionalmente, ou também saberem punir, por seus meios próprios, discursos intolerantes que muitas vezes surgem na própria família do aluno ou em certos grupos sociais. Há discursos que chamamos de adoxais porque eles não possuem lugar em uma sociedade democrática, pois são inclusive passíveis de ação penal e jurídica, como racismo e antissemitismo”, explica.

A formação do pensamento crítico como resposta

Para Souza, a melhor estratégia para contornar os casos é as escolas se dedicarem à formação e ao desenvolvimento do pensamento crítico dos alunos. “É o que falta para o brasileiro, aprender a pensar, raciocinar e formar suas opiniões com crivo crítico e lógico”, considera.

A conduta, reitera, em nada tem a ver com ideologias ou partidarismo, seja de direita ou de esquerda. “A formação do caráter e da ética também dependem do pensamento crítico, pois ele conduz diretamente à boa compreensão do que é razoável e do que não é razoável. Formar para o pensamento crítico é formar o aluno para aprender a pensar”, coloca, reiterando que a habilidade requer calma, tranquilidade, refletir, antes de decidir.

“É preciso ouvir mais antes de falar, fazer relações, negociar pontos de vista, crenças e posições, pensar sobre a realidade, sobre suas causas, sobre seu modo de funcionamento, pensar mais sobre o que dizem os políticos antes de se deixar persuadir por seus discursos sedutores, saber avaliar e analisar os argumentos, refletir sobre seus fundamentos e garantias, sobre a solidez das argumentações”, pondera.

Os sujeitos intolerantes, afirma o pesquisador, atuam na contramão dessa lógica, “agem emocionalmente, dominados por crenças incondicionais, não aprenderam a pensar e resistir aos seus automatismos”.

Wander reforça o papel do debate para desconstruir os discursos intolerantes. “É preciso agir pedagogicamente, falando abertamente sobre eles e mostrando a sua fragilidade, sua inconsistência e seu perigo para uma sociedade democrática, aberta, plural e harmoniosa. O discurso intolerante só leva à violência. Cabe aos educadores, mas também a toda a sociedade, se proteger dos discursos intolerantes, regulando o seu exercício e não os deixando assumir um papel dominante, o que seria uma catástrofe em qualquer país”.
O (perigoso) lugar dos discursos nas políticas educacionais

Os discursos têm uma relação direta com o poder e, nessa medida, acabam impactando também as discussões macro das políticas educacionais. Souza exemplifica o Escola sem Partido, movimento que tem se desdobrado em propostas e projetos de lei pelo País, e que tem como pano de fundo impedir uma possível “doutrinação” por parte dos professores e impedir o debate de gênero nas escolas.

“Os propositores do projeto Escola sem Partido continuam mobilizados, gerando adeptos, e causando grande estrago e conflito nas discussões mais racionais sobre os problemas educacionais do país, que são muitos, mas estão sendo simplificados numa agenda ultraconservadora e autoritária”, considera Wander. “De onde surgiram tais discursos intolerantes senão de uma discussão eleitoral e totalmente desnecessária sobre ideologia de gênero?”, questiona.

Ele também cita a recente atuação da bancada evangélica que acabou por definir a nomeação do Ministro da Educação, o colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, alinhado à agenda do Escola sem Partido. “No mesmo dia de sua indicação, o ministro declarou que deveríamos comemorar o golpe e a ditadura de 1964. É a prova de que discursos constroem a memória histórica e também podem agir para desconstruir a própria história, impor novas versões, como o já conhecido e refutado negacionismo do Holocausto, discurso, inclusive de origem acadêmica, que tentou refutar as provas evidentes da existência do genocídio dos judeus pela Alemanha nazista. Fato histórico já consolidado e reconhecido oficialmente pela própria Alemanha”.

Os discursos, reforça o pesquisador, incluem muitos poderes e perigos. A orientação é que a sociedade fique atenta aos limites daqueles que promovem a violência e a intolerância.

“A diversidade é constitutiva de uma sociedade democrática, e os discursos intolerantes não. Paradoxalmente, os discursos intolerantes devem ser tolerados em qualquer regime democrático, mas este precisa ficar vigilante sobre a intensidade dos discursos intolerantes e de sua capacidade de promover a violência (extraverbal). O papel da educação nesse sentido é crucial”, finaliza.

*Nomes alterados para proteger a identidade dos entrevistados. Publicado originalmente no site de Carta Educação.

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