A resposta pode chocar muita gente, mas a verdade é que a grande maioria não foi eleita com votos diretos de seu eleitor. Apenas 36 dos deputados federais brasileiros eleitos em 2014 conseguiram os votos de urnas necessários para obter uma das 513 cadeiras da Câmara na atual legislatura. Isso quer dizer que só 7% dos parlamentares superaram o mínimo necessário de votos – o chamado quociente eleitoral – para garantir um espaço na Casa legislativa, o mesmo número da eleição de 2010. E os outros 477? Como chegaram lá?
Diferentemente das eleições para governador ou presidente, que funciona pelos votos da maioria (eleição majoritária, ou, vence quem tem mais votos no primeiro turno, e 50% dos votos mais um se houver segundo turno), deputados e vereadores se elegem pelo sistema proporcional. O tal quociente eleitoral define o jogo: a soma das vagas de deputados dividido pelo número de votos válidos durante uma eleição. É esse número mágico que define quem passa pelo crivo popular direto de fato. E aí estão os tais 36. Eduardo Cunha, Chico Alencar, Jair Bolsonaro, Tiririca e Celso Russomano, por exemplo, integram esse seleto grupo.
Os demais 477 acabam entrando beneficiados pelo número que ultrapassa esse quociente e que pode ser distribuído para outros parlamentares do partido dos candidatos mais votados. Os votos de legenda, por exemplo, entram nessa conta do quociente eleitoral. É por isso que as legendas apostam nos chamados “puxadores de votos”: nomes mais famosos que atraem atenção dos eleitores. O palhaço Tiririca, por exemplo, eleito em 2010 por primeira vez com o slogan “Vote em Tiririca, pior que está não fica”, é o melhor exemplo. A inofensiva mensagem garantiu-lhe mais de um milhão de votos em 2014 quando concorreu pelo PR por São Paulo, número muito acima do quociente necessário proporcionalmente para o tamanho do seu partido e para as vagas disponíveis para os deputados paulistas na Câmara. Com ele se elegeram o Capitão Augusto, que teve somente 46.900 votos e Miguel Lombardi (32.000), ambos do PR.
Em 12 das 27 unidades da federação, os eleitos em 2014 tiveram de contar com votos que não eram seus, mas que foram dados aos seus partidos ou companheiros de coligação (parceria entre dois ou mais partidos). O Distrito Federal foi um desses locais. O cálculo para eleger um deputado aqui era assim: dividiu-se os 1,45 milhão de votos válidos por oito, que é o número de parlamentares locais. Chega-se ao quociente de 187.100. Só está eleito quem tiver essa votação. Quem não a tiver, precisa somar os votos dos companheiros de coligação ou os de legenda.
O modelo eleitoral voltou ao foco por causa da votação do impeachment da presidenta Dilma, quando se escancarou a falta de preparo de boa parte dos deputados que lá estavam. As justificativas para apoiar ou não a destituição da presidenta demonstrou, por exemplo, que vários deles não analisaram fundamentos jurídicos, ou até mesmo políticos, que interferem em um processo de impedimento de um mandatário. Uma multidão entre os 511 votantes (dois se ausentaram) disse que votava pela família, por Deus e até em homenagem a um torturador da ditadura militar, a alusão ao pequi ou contra o ensino da sexualidade para as crianças.
Um levantamento feito pela Secretaria Geral da Mesa da Câmara e divulgada no site do Legislativo, logo após a eleição de 2014, mostrou que além de Cunha, Chico Alencar e Tiririca estão também Jarbas Vasconcellos (PMDB-PE), o apresentador de TV Celso Russomanno (PRB-SP), os pastores Eurico (PHS-PE) e Marcos Feliciano (PSC-SP) além do ex-militar Jair Bolsonaro (PSC-RJ). Do grupo de 36 eleitos diretamente, foram registrados 27 votos pelo impeachment de Rousseff, sete contra e ainda houve uma ausência (Clarissa Garotinho, do PR-RJ) e um dos deputados, Felipe Carreras (PSB-PE), não votou por está licenciado do cargo.
O debate sobre o modelo de votação é complexo porque a alternativa 'lógica', num primeiro momento, parece ser que a votação por maioria, como a para governador ou presidente ou senadores, fosse mais justa também para os deputados. Mas, cientistas políticos explicam que esse modelo enfraqueceria os partidos e deixaria de fora segmentos importantes da sociedade. “Imagine o que aconteceria com um candidato que defendesse bandeiras LGBT”, pergunta o cientista político Vivaldo de Sousa.
Há, também, um lado do próprio eleitor brasileiro que não se interessa tanto em quem está no Legislativo, ficando mais preocupado em quem será seu presidente ou Governador.
Nota-se que a onda conservadora domina boa parte dos votos dos candidatos mais votados diretamente. Seis dos 36 deputados diretamente são representantes da bancada evangélica.E esse conservadorismo, interferiu no apoio ou não ao Governo. Desde 2012, a gestão petista já vinha perdendo apoioo Congresso. Naquele ano começaram a ganhar força os parlamentares dos grupos de ruralistas, de representantes da Segurança Pública e de evangélicos, a chamada bancada BBB (boi, bala e bíblia). Na ocasião, o primeiro “B” e o último da sigla se uniram para interferir na votação do Código Florestal. A eleição de 2014 só serviu para encorpar ainda mais essa frente parlamentar e transformar o atual Congresso Nacional em um dos mais conservadores do país.
Na radiografia do Congresso elaborada pelo Departamento Intersindical de Análise Parlamentar (DIAP) há uma possível explicação para essa onda conservadora e antipetista. “Houve, em quase todos os Estados, alianças entre partidos de esquerda e de direita, cujos votos tanto poderiam eleger pessoas identificadas com as pautas sociais e com os direitos humanos, como poderiam sufragar candidatos conservadores, contrários à proteção ao meio ambiente, às conquistas sociais e aos direitos de minorias étnicas, etárias, de gênero, entre outras. Prevaleceu a segunda hipótese, porque os conservadores apresentaram-se como ‘populistas’, ‘messiânicos’, com grande visibilidade em suas comunidades, e contrários a ‘tudo que está aí’, e, em geral, em coligações nas quais tinham certeza de que atingiriam o quociente eleitoral”.
A falta de identificação com movimentos sociais faz com que os parlamentares se sintam livres para flutuar conforme seus próprios interesses ou de acordo com os humores de seus eleitores. Na votação do impeachment de Dilma, por exemplo, vários parlamentares que se comprometeram com a presidenta ou com seus articuladores a não apoiar a destituição dela acabaram mudando de lado de última hora. O efeito-manada, quando alguns dos parlamentares acompanharam a votação de uma maioria já consolidada, também interferiu no processo de impeachment, segundo admitem diversos membros da bancada governista.