por Guilherme Boulos para Carta Capital*
Defesa dos movimentos sociais deve ser um compromisso de todos aqueles que se preocupam com as liberdades democráticas e o futuro do nosso povo
A crise mais profunda da nossa jovem e frágil democracia teve como desfecho a eleição de um candidato de extrema-direita ao maior cargo político do Brasil.
Enquanto candidato, Bolsonaro prometeu banir os “marginais vermelhos”. A oposição poderia escolher entre o exílio, a cadeia ou a “Ponta da Praia”, local onde opositores eram executados durante a ditadura. Mesmo depois de eleito, manteve o tom de candidato e seguiu tratando partidos de esquerda e movimentos sociais como inimigos a serem perseguidos.
Essas declarações não ficaram restritas às redes sociais e à mídia. Traduziram-se em movimentações em Brasília nas últimas semanas, com a tentativa de desengavetar projetos como a Escola Sem Partido e a revisão da Lei Antiterrorismo.
Essa lei foi sancionada em 2016 por Dilma Rousseff na preparação para as Olimpíadas do Rio de Janeiro. Na época, recebeu fortes críticas e oposição dos movimentos sociais – inclusive a nossa – e de especialistas em Direito. Em uma era de tanta desinformação, é fundamental recordarmos que o Brasil não tem histórico de atos terroristas.
Foi o primeiro país do mundo em que uma lei dessa natureza foi feita sem que houvesse fatos precedentes que a justificassem. Assim, sua utilização abriria margem mais para fabricar inimigos a depender da interpretação e dos alvos escolhidos.
Em fevereiro deste ano, um deputado do Rio Grande do Sul havia proposto estender a lei a movimentos sociais como o MTST e o MST. Com a mudança, a ocupação de imóveis urbanos e rurais seria uma forma de “terror social ou generalizado”.
Logo após o segundo turno, Magno Malta, senador não reeleito e cotado para o ministério de Bolsonaro, pautou novamente no Senado a modificação da lei. O plano era ampliar a tipificação de terrorismo para atos como “coagir o governo” a “fazer ou deixar de fazer alguma coisa, por motivação política, ideológica ou social”. É uma definição tão genérica e perigosa que é impossível imaginar uma manifestação política que não caiba nessas palavras.
Qualificar a oposição política e a luta social como “terrorismo” não é propriamente uma novidade. A ditadura brasileira fez isso, como outros tantos regimes autoritários ao redor do planeta. Precisamos barrar essa sedução totalitária, caso contrário milhares de brasileiros serão qualificados como os “novos terroristas”. A organização da sociedade civil em grupos que pressionem o poder público faz parte do jogo democrático.
Além disso, vivemos em uma nação profundamente desigual e com carências históricas. No caso das ocupações, é sempre necessário lembrar que o Brasil tem mais de 6 milhões de famílias sem casa e 3% das propriedades agrícolas do País ocupam mais da metade das terras agriculturáveis. Daí nasce a luta por teto, por terra e a reivindicação por muitos outros direitos sociais.
Incluir em uma lei de combate ao terror famílias que se organizam pelo direito de viver sob um teto digno e de possuir um pedaço de terra para plantar é uma excrescência. No caso do MTST, conheço de perto aqueles que ocupam e por que ocupam.
São pais e mães de família, trabalhadores, que deixam a maior parte de seus escassos rendimentos no aluguel. São idosos que trabalharam duro a vida toda e mesmo assim não tiveram a oportunidade de ter uma casa própria. São jovens que sofrem humilhações morando de favor em puxadinhos ou cômodos de fundo na casa de alguém.
Ao mesmo tempo, convivendo com essas realidades, existe uma enorme quantidade de imóveis abandonados, com dívidas impagáveis, grilados – em situação flagrantemente ilegal diante da Constituição e do Estatuto das Cidades.
Ninguém ocupa porque quer, mas por falta de alternativa. Os movimentos não ocupam a casa de quem quer que seja, somente imóveis abandonados e fora da lei. Tratar essas organizações como terroristas é um retrocesso democrático.
É sempre importante relembrar que o fim da ditadura não se deu por decreto ou por desejo dos governantes, mas pela organização durante anos da sociedade civil e dos movimentos sociais. Foi também pelo diálogo do poder público com movimentos e organizações não governamentais que surgiram iniciativas legislativas e políticas públicas fundamentais para a história do Brasil.
Movimentos sociais são legítimos e seguirão a existir em qualquer sociedade. Criminalizar quem se organiza por meio deles é atacar a democracia. Não se acaba com o MTST e com o MST com legislação ou violência, mas garantindo uma política pública ousada que assegure moradia aos 6 milhões de famílias sem-teto e faça uma reforma agrária para que todos tenham terra para trabalhar.
A defesa dos movimentos sociais diante de tantas ameaças deve ser um compromisso de todos aqueles que se preocupam com as liberdades democráticas e o futuro do nosso povo.
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Guilherme Boulos é Coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Publicado pelo site de Carta Capital.
Imagem de capa: Marcello Casal Jr. / ABr