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A oferta de uma viúva pobre: Mudança de Paradigma

Leia a reflexão de Claudete Beise Ulrich sobre Marcos 12.38-44.
Boa leitura!

Escrevo este texto, num momento de grandes escândalos no Brasil, devido à corrupção e lavagem de dinheiro. Igrejas têm sido usadas e, inclusive, se utilizado dessas benesses corruptas. Um político, inclusive, tem uma empresa com o nome de Jesus.com, providenciada por ele como expediente para a lavagem de dinheiro público. A fé cristã está sendo disposta como mercadoria para desvios financeiros e em vista disto, medito sobre o texto de Marcos 12.38-44. O que significa, neste contexto, a viúva dar tudo o que tinha? De que forma, este texto ajuda na reflexão sobre a doação financeira? A personagem protagonista da narrativa é uma viúva pobre, isto é, uma pessoa excluída da sociedade. Vivemos também, no momento, uma grande xenofobia aos pobres no Brasil, às pessoas estrangeiras, aos negros e negras, às mulheres, aos povos indígenas… Portanto, o texto nos faz também refletir sobre os grupos de pessoas excluídas de nossa sociedade.

O chão brasileiro religioso: a questão do dízimo

Muito ouvimos falar de dízimo, doações e ofertas. Existe muita discussão em torno deste assunto. Exageros em relação à temática são proclamados e também praticados na realidade religiosa pluralista e sincretista brasileira. Escutamos, inclusive, histórias tristes de pessoas que entregam o dízimo a determinadas igrejas, mas passam necessidade de comida, de saúde e até de educação. Outras pessoas testemunham que desde que estão doando o dízimo receberam muitas bênçãos em sua vida. As histórias de vida e de fé são, muitas vezes, contraditórias em relação à prática do dízimo, que se tornou uma lei de troca, principalmente em determinadas igrejas evangélicas. O discurso religioso do dízimo está relacionado, na maioria das vezes, com o recebimento de bênçãos e prosperidade, baseado numa teologia retributiva, isto é, procura-se negociar com Deus.

No entanto, não é a quantia de doação e oferta que importa, mas a intenção com que é doado. Quem não se sensibiliza quando observa a alegria de crianças doando brinquedos, roupas, ou até mesmo, as suas moedinhas. O que conta é exatamente essa alegria. Certa vez, participei de uma celebração onde a comunidade estava arrecadando doações em alimentos, roupas, brinquedos para pessoas vítimas das enchentes. Emocionei-me muito quando vi crianças levando os seus brinquedos ao altar e elas voltavam correndo junto aos seus pais com um largo sorriso nos lábios. Doação tem a ver com a entrega para uma causa. O que interessa é como acontece a doação… Ela não pode ser forçada. Necessita ser um verdadeiro gesto de solidariedade e de alegria!

Contudo, é necessário ter claro que não vivemos numa sociedade igualitária. No mundo em que vivemos, não é possível ignorar a diferença entre as pessoas. Há pessoas com melhores condições financeiras do que outras. Muitas vezes, nossas doações, também estão ligadas a projetos concretos. As contribuições de todas as pessoas são importantes para o trabalho da igreja, das organizações não governamentais, inclusive, do CEBI. Porém, permanece em qualquer situação válida a questão que Deus não avalia o doador ou a doadora conforme a quantia doada. O que tem valor é como você doa, como nós doamos. Se é com amor, com o coração aberto! Quando você doa, você também necessita conversar com sua família. A doação também necessita ser uma decisão compartilhada, decidida coletivamente.

Tenho ouvido muitas histórias em que pessoas são coagidas a doar aquilo que também significa o sustento da família, inclusive, casa, terreno, carro, dinheiro, entre outros. Então, quando isto acontece, necessitamos ter muito claro que isto não é da vontade de Deus. Nenhuma pessoa pode ser coagida a doar. Tem se utilizado de métodos que envolvem a emoção para fazer as pessoas entregarem muitas vezes mais do que elas realmente gostariam e poderiam doar, pois muitas, infelizmente, vão atrás de promessas falsas, através do discurso das teologias retributiva e da prosperidade. Estas teologias incentivam um negócio com Deus e este não é o objetivo da oferta. O ofertar tem a ver com a gratidão. Quem assim age, não atua de acordo com o evangelho que liberta, mas se apodera de um discurso para tirar, poderíamos até mesmo dizer, roubar da outra pessoa.

Texto de Marcos 12.38.44

É interessante observar que nos versículos 38-40 Jesus alerta o povo, em relação aos religiosos de seu tempo, os escribas, a forma como os mesmos se comportam, se vestem com roupas especiais, escolhem os lugares de honra nas casas de oração e nos banquetes. No versículo 40 Jesus diz (Bíblia na Linguagem de Hoje): “Exploram as viúvas e roubam os seus bens, e para disfarçar, fazem longas orações. Portanto, o castigo que vão sofrer será pior!”.

O texto continua a relatar que Jesus estava no templo, sentado perto da caixa das ofertas e observava como o povo punha ali a sua doação. Jesus observa e declara, então, que a viúva que colocou duas moedas, ao dar de sua pobreza, “deu tudo o quanto tinha para viver” (v. 44), dispôs, com esta atitude, toda a sua vida perante Deus. O texto no qual estamos meditando evidencia fortes contrastes, mudanças de paradigmas: o que vale para Jesus não é a quantidade, o valor da oferta, mas sim a forma, o jeito como a doação é depositada na caixa das ofertas.

A pessoa que narra o texto, no Evangelho de Marcos, faz claramente uma oposição entre a atitude dos professores da lei (escribas) e a atitude da viúva pobre. Nos versículos 38-40 Jesus censura a forma como os escribas se apresentam e atuam, e nos versículos 41-44 ele exalta a oferta da viúva pobre. Jesus apresenta dois grupos que se opõem na sociedade. Aí se encontra o conflito do texto.

Jesus condena, com rigor, o fato dos escribas tirarem, de alguma forma, os recursos das viúvas. Como vimos, os escribas com suas atitudes consideravam-se melhores que as viúvas, seja como religiosos, ou como cidadãos.

Na sociedade da época de Jesus, as viúvas pertenciam ao grupo dos pobres. Viúvas e órfãos eram o símbolo do desamparo, da marginalização. Estavam entregues à própria sorte. Não havia sistema previdenciário, um SUS, que os amparasse. Viúvas não davam oferta – mendigavam esmolas. Elas eram marginalizadas, porque dependiam de outras pessoas para sobreviverem. Se não tinham filhos, estavam então, totalmente desamparadas.

Para além do contraste fundamental e mais óbvio no registro do evangelista (v. 41: ricos e v. 42: viúva pobre), Jesus “desloca” a viúva da situação de sujeito marginal trazendo-a para o centro, como sujeito ativo. A viúva é feita referência de devoção e de fé e não os “senhores da lei”. Quem se torna exemplo de fé não são os escribas, e sim a viúva pobre.

É importante deixar claro que Jesus não faz uma comparação entre ricos e pobres, não é esta a questão. O que Jesus compara é a atitude das pessoas que se dizem crentes em Deus. No Evangelho acontece uma inversão do paradigma. Não são os mestres da lei, os escribas, os exemplos de fé, mas sim a viúva, ela doa tudo o que tem.

Na narrativa, Jesus chama os discípulos e lhes diz: “Eu afirmo a vocês que esta viúva pobre deu mais do que todos. Porque os outros deram do que estava sobrando. Ela, porém, tão pobre assim, deu tudo quanto tinha para viver” (v. 44). Jesus percebe na atitude da viúva uma entrega confiante, desprendida.

A viúva era pobre

A viúva dentro do contexto da comunidade de Marcos fazia parte do grupo de pobres. Viúvas eram excluídas da vida normal da comunidade. Ela deu “tudo quanto possuía”. À primeira vista, esse gesto parece até ser um ato de irresponsabilidade. No entanto, é um gesto de confiança irrestrita em Deus. Só que como já refletimos anteriormente, deve-se ter todo o cuidado para não usarmos este texto como uma lei, mas como ação libertadora boa-nova.

A doação da viúva pobre apresenta relações com Jesus, o qual também se entregou inteiramente em resgate de muitos. No seguimento a Jesus, também será necessário fazer renúncias, afirmar outro tipo de mentalidade, outro jeito de viver, transparecendo nas relações de solidariedade. As viúvas bíblicas e marginalizadas de hoje mostram o quanto a sociedade está amarrada ao lucro de poucos em detrimento do prejuízo de muitos. A viúva que foi vista por Jesus sobrevive até hoje, servindo de inspiração para nós, pois ela entendeu o que significa viver graças ao amparo de Deus.

Damos dinheiro à Igreja para que ela desenvolva o seu trabalho e ampare as viúvas, os pobres, todas as pessoas excluídas e que a mensagem do Evangelho gracioso e libertador possa ser proclamada.

A atitude de humildade da viúva a religa mais a Deus do que os escribas que ficam se exibindo nas praças com suas longas orações. Lembro-me da Palavra da Carta de Tiago (1.27): “A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e a si mesma(o) guardar-se incontaminada(o) do mundo”. A viúva que Jesus observou deixou no templo de Deus o sustento de sua vida. Ela entregou sua vida nas mãos de Deus. A pobre viúva entregou a sua oferta, como era costume. O detalhe importantíssimo, porém, é que ela “da sua pobreza deu tudo quanto possuía, todo o seu sustento”. Trata-se de uma entrega total, abnegada, mas que indica uma forte esperança que sustenta a vida.

Quem são os pobres hoje em nossas comunidades? Como estão sendo cuidados?

Comunidade cristã, por natureza, é inclusiva. Como tal, ela se preocupa em especial com os pobres, com aquelas pessoas que no critério do mundo que não tem valor. Por pobres, se entendem todas as pessoas excluídas da sociedade, independente dos motivos da exclusão. Portanto, há muitos pobres entre nós. É só abrir os olhos e ter um coração acolhedor e solidário. Sejamos comunidade acolhedora das pequenas doações que transformam o mundo, assim como Jesus enxergou a doação da viúva pobre. Um canto africano diz: “muitas pessoas pequenas, em muitos lugares pequenos, podem mudar a face do mundo”. Acreditamos nas pequenas ações ativas, combativas e esperançosas de nosso cotidiano. Há neste momento, muitos grupos se encontrando para lutar contra a exploração e discriminação que se assola entre nós.

Concluindo

Em muitas igrejas percebe-se um apelo exacerbado no sentido de angariar contribuições maiores para o trabalho da própria igreja. Não faltam exemplos de líderes de igrejas brasileiras que enriqueceram desta forma. Há uma verdadeira ditadura do ofertar em determinadas denominações religiosas, atitude que não corresponde ao evangelho. A oferta necessita ser de gratidão. Portanto, o texto da oferta da viúva pobre do Evangelho de Marcos não deve ser usado neste sentido. O destaque não está na grande soma de dinheiro ofertada, mas na pequena oferta que é doada pela viúva pobre. Tudo que somos e temos recebemos de Deus por sua imensa graça e misericórdia. Nada nos pertence. Fomos agraciados por Deus e por gratidão ofertamos nosso tempo, nossos dons e nossos recursos materiais para a sua causa no mundo, isto é, da paz e da justiça. Agimos em favor da sua causa na Igreja e na sociedade. A história da viúva é como um grande quadro que Jesus pinta para os seus seguidores e seguidoras, onde ele apresenta uma inversão de valores, mudança de paradigma. A oferta é recebida por Deus quando é dada com o coração aberto e solidário, comprometido com a causa dos pobres deste mundo.

Neste momento de extrema necessidade de discernimento na forma de ofertar e doar, onde aprendemos da viúva pobre o significado da doação com amor e gratidão, encerro, convidando a cantar o hino: Sabes, Senhor, o que temos é tão pouco pra dar.

Estr.: Sabes, Senhor, o que temos é tão pouco pra dar,
mas este pouco nós queremos como irmãos compartilhar.

1. Queremos nesta hora, diante dos irmãos,
comprometer a vida, buscando a união.

2. Sabemos que é difícil os bens compartilhar,
mas com a tua graça, Senhor, queremos dar.

3. Olhando o teu exemplo, Senhor, vamos seguir
fazendo o bem a todos, sem nada exigir.
Autor: Lindbergh Pires

Referências Bibliográficas:
SPERB, Ulrico. Marcos 12.41-44. In: SCHNEIDER, Nelio e DEIFELT, Wanda. (Coordenação e editoração). Proclamar Libertação, São Leopoldo: Sinodal/EST, 1997, p. 281-285.
SCHMIDT, Ervino. Marcos 12.41-44. In. SOUZA, Mauro Batista de (Coord.): Proclamar Libertação, São Leopoldo: Sinodal/EST, 2008, p. 387-393.

Texto de Claudete Beise Ulrich, Faculdade Unida – Vitória – ES, Colaboradora do CEBI.

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