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Mãe de jovem morto no Rio: “É um Estado doente que mata criança com roupa de escola”

por Felipe Betim para El País*

Prefeitura abre sua sede para velar Marcos Vinícius, 14 anos, morto durante operação policial na Maré. Professores relembram garoto e estudantes denunciam assédio da polícia em protesto.

Marcos Vinícius da Silva estava sempre sorrindo. “Mesmo quando a gente dava esporro, ele estava sempre rindo”, lembra o professor de Geografia Rafael Gurgel, uma das dezenas de pessoas que estiveram nesta quinta-feira no velório do adolescente de 14 anos, morto um dia antes durante uma operação policial no Complexo de Favelas da Maré, na zona norte de um Rio de Janeiro sob intervenção federal desde fevereiro. Entre lágrimas de dor e indignação, os mais próximos lembravam de um garoto brincalhão. O cenário da despedida foi o Palácio da Cidade, sede da Prefeitura do Rio de Janeiro aberta para acolher familiares e um ônibus lotado de moradores da Maré.

Dentro da imponente construção, silêncio e cabeças próximas ao caixão aberto para a cerimônia, que começou por volta de 15h. Do lado de fora, desabafo: “A culpa é desse Estado doente que está matando as nossas crianças com roupa de escola. Estão segurando mochila e caderno, não é arma, não é faca. Não estão roubando e nem se prostituindo, estão estudando!”, diz a trabalhadora doméstica Bruna Silva, mãe de Marcos Vinícius. Ela culpa os policiais com base em um depoimento: o de seu próprio filho, que ficou lúcido durante um tempo mesmo baleado. “Ele disse: ‘Mãe, eu sei quem atirou em mim. Foi o blindado, mãe. Ele não me viu com a roupa de escola”, conta Bruna. Ela ainda acrescenta: “Dizem que minha comunidade é violenta. Mas a minha comunidade não é violenta, ela é muito boa. É a operação que, quando vai lá, vai com muita truculência”.

A operação policial na Maré, mais precisamente nas comunidades Vila do Pinheiro e Vila do João, contou com policiais civis e militares e soldados do Exército. Terminou com a morte de outros seis rapazes, os quais a Polícia Civil diz serem suspeitos de estarem envolvidos na morte de um inspetor da corporação. Em vídeos compartilhados nas redes sociais sobre a ação desta quarta é possível ver helicópteros da Polícia Civil fazendo voos rasantes sobre o território e escutar vários tiros — os moradores denunciam que policiais dentro da aeronave estavam disparando contra alvos no solo. Quando começou esse tiroteio, por volta de 9h da manhã, Marcos Vinícius saía de casa atrasado para a escola, o Ciep Operário Vicente Mariano. Não era um panorama desconhecido, já que só em 2017 as escolas do Rio chegaram a fechar 184 dias por causa de tiroteios e o Complexo da Maré foi uma das áreas mais afetadas. No meio do caminho, quando já havia decidido voltar para casa, Marcos levou um tiro “pelas costas”, segundo concluiu o laudo do Instituto Médico Legal, revelado pelo programa RJ TV, da Globo. Os peritos ainda concluíram que a bala perfurou a barriga do garoto. Mesmo assim, segurando a barriga, virou-se para o amigo que lhe acompanhava, Henrique, e disse: “Fica tranquilo, vai dar tudo certo”.

Marcos Vinícius foi então levado para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) por moradores. “Quando eu cheguei na UPA ele estava com vida. Eu dizia para ele ficar calado, para ganhar fôlego. Foi aí que ele começou a gemer”, lembra a mãe Bruna. “A ambulância demorou uma hora para chegar porque os policiais mandaram ela voltar da avenida Brasil. Aí veio uma ordem superior mandando ela entrar. Nesse momento, meu filho já estava estava roxo, pálido, gelado. O beicinho dele já estava inchado. Ele estava falecendo ali na minha frente”, conta.

Uma vez transferido para o Hospital Getúlio Vargas, o menino foi operado. Teve o baço e um rim retirado, além de ter levado ponto no estômago, segundo conta sua sua mãe. “A bala estragou tudo por dentro dele, não ficou nada. A única coisa que ficou foi a pressãozinha dele, que foi caindo até ele chegar a óbito. Meu filho lutou, meu filho não queria morrer. Ele era um guerreiro”.

Bruna termina de falar e, minutos depois, chega ao Palácio da Cidade, no bairro de Botafogo, um ônibus lotado de moradores da Maré. A maioria composta por adolescentes amigos de Marcos Vinícius, mas também professores, vizinhos, amigos da família… Gritos e choros agudos furam o silêncio pesado. Henrique, o menino que acompanhava Marcos Vinícius durante o tiroteio, precisou ser amparado por professores. Muito agitado, aos prantos, não se conformava com o fato de que seu amigo havia sido mais uma vítima do caos na segurança pública do Rio de Janeiro. Entre cantos e orações, o prefeito Marcelo Crivella se une à multidão ali presente. Todos eles, incluindo o prefeito, deixam o Palácio por volta de 17h para acompanhar o enterro, no cemitério São João Batista, pago pela Prefeitura. No caminho, mais orações, mais canto para aliviar a dor.

Acusado de ser um prefeito ausente e com uma reprovação que ronda os 60%, segundo pesquisas de opinião, Crivella fez algo inédito — ao menos em anos recentes — ao abrir o palácio do Governo para uma pessoa da favela vítima de uma operação policial. Na saída do velório, o bispo licenciado da Igreja Universal dizia que o momento não era o de buscar culpados, mas sim de se despedir de Marcos Vinícius e acolher seus familiares e amigos. Contudo, criticou as operações policiais que ocorrem em horário escolar e colocam em risco a segurança de professore e alunos, uma reclamação constante do secretário municipal de Educação, César Benjamin, também presente. Em nota, a Polícia Civil informou que vai apurar as circunstâncias da morte do garoto e insistiu que o helicóptero usado na ação na Maré não disparou contra alvos no solo.
“Uma criança que estudava e brincava”

Marcos, na descrição dos que eram próximos, era um adolescente comum. “Uma criança que estudava, que brincava, que zoava os outros e perturbava o juízo de todo mundo”, diz, pontuando com risadas, a vizinha Mara Vaz, 39 anos. “Uma vez ele pegou meu neto e tacou leite em pó na cabeça dele. As crianças viviam correndo atrás dele. Era uma criança muito brincalhona”, emenda. “Ele estava vivendo o momento de adolescência, que é o momento de dançar, farrear, curtir com os coleguinhas, ir para a festinha da escola e da comunidade, curtir. Essa era a vida dele. Era apenas uma criança que queria viver. E era amado demais. Não é à toa que está todo mundo aqui hoje”.

Os professores Rafael Gurgel e Roberta Santos, que davam aula de Geografia e Matemática para Marcos Vinícius na escola municipal onde estudava, juntam relatos à imagem do garoto de bom humor que sentava sempre “no fundão” ao lado do amigo Luan. “Marquinho era um menino bem levado, ano passado repetiu o sétimo ano. Nesse ano ele voltou pra escola com outro ânimo. Estava fazendo tudo, todas as atividades”, conta ele. “Foi a primeira coisa que falei para a mãe dele. Toda vez ele era o primeiro a entregar o caderno”, acrescenta.

Roberta explica que seus alunos chegaram cedo ao colégio nesta quinta-feira e logo se reuniram na sala dos professores com cartazes e tinta. Partiu deles a ideia de fazer um ato de repúdio ao que havia acontecido com o colega no dia anterior. Com o auxílio dos professores, “80 ou 100 alunos” caminharam, todos com uniforme da escola, pela Maré até a Linha Amarela, uma via central de interligação da cidade, “para dar visibilidade” ao protesto. “A gente estava na calçada, na passarela, quando a polícia chegou com fuzil atravessado para intimidar. Do nada chegaram duas viaturas enormes e muitos policiais começaram a nos cercar. Estavam mascarados”, conta a professora Roberta. Uma de suas alunas ao lado emenda: “Ficaram xingando a gente, mandando a gente calar ‘a porra da boca’. Nos agrediram verbalmente e depois um deles deu uma paulada em uma das meninas”. A cena foi registrada em vídeo, que pode ser visto abaixo. Nele, um policial com um pedaço de madeira se aproxima e agride as pernas de uma menina de 13 de anos. “Depois disso, ele pegou o fuzil e apontou, como se fosse atirar. A gente estava tentando dialogar e nem estávamos bloqueando a rua. A gente se retirou depois disso”, explica a professora.

O que fica agora é uma “enorme interrogação”, dizem os educadores. O que irão dizer para seus alunos na segunda-feira? Como darão aula? “O sentimento de hoje foi de vazio, de raiva. Daqui a pouco vem a tristeza”, diz Roberta. Marcos Vinícius foi o primeiro aluno seu que ela viu morrer. Mas o professor de teatro João Duarte, mais velho e com anos de experiência em vários territórios, está acostumado a esse tipo de situação: “Quem dá aula em comunidade perde vários alunos. Já perdi uns cinco ou seis”, conta. Rafael lamenta: “A Maré já provou que nem sendo vereador você consegue ficar vivo”, diz ele, referindo-se a vereadora executada Marielle Franco. “Ela morou a vida toda em frente ao Ciep. Era uma referência pra mostrar que era possível fazer muitas coisas. E agora, qual é a referência? Se você sai da Maré para lutar e brigar por quem está dentro, você é morto da mesma forma”, emenda.

Os ritos no cemitério São João Batista foram acompanhados por todos os que estavam no palácio momentos antes, incluindo os professores, dezenas de adolescentes, familiares e o prefeito Crivella. O caixão branco de Marcos Vinícius foi colocado em uma gaveta do cemitério por volta de 18h30 desta quinta. O pai do menino não conseguia falar. Chorava. Momentos antes, enquanto um pastor falava, permaneceu com a cabeça encostada no caixão. Já a mãe, firme, agradecia a todos pela presença e consolava o marido. “Ainda não estou de luto, ele vai chegar quando eu enterrar meu filho. Sua morte não vai ser mais uma, a gente vai lutar por justiça. Porque esse Estado tem que melhorar. Ele não pode matar inocente e criança”.

A reportagem é de Felipe Betim, publicada por El País, 22/06/2018.

Foto de capa: Amigos e familiares de Marcos Vinícios choram sobre sua camiseta da escola manchada de sangue, nesta quinta-feira. MAURO PIMENTEL AFP

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