Notícias

Corpus Christi: comunhão com Cristo, comunhão com o universo

Confira a reflexão bíblica para o próximo domingo, elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta.  O evangelho é segundo Marcos 14,12-16.22-26.

Boa leitura!

“Jesus tomou o pão e, tendo pronunciado a benção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: ‘Tomai, isto é o meu corpo” (Mc 14,22)

Na celebração da festa de Corpus Christi, corremos o risco de honrar o Corpo de Jesus, mas desprezar o corpo humano, “a carne de Cristo”.

Participamos, com muita fé, dedicação e respeito, das celebrações do “Corpo de Cristo”, mas pode ser que, às vezes, façamos uma profunda cisão ou ruptura entre o que celebramos e a realidade que nos cerca, ou seja, o encontro com os “corpos desfigurados”: explorados, manipulados, usados, escravizados, destruídos… Pode ser que tenhamos um profundo amor e respeito pelo “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aqui, ali, lá, por todos os lados.

“Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco)

É esse o sentido que a festa de “Corpus Christi” nos revela, ou seja, a festa do Corpo Histórico e Humano de Jesus, corpo prazeroso e sofredor, amado por muitos e muitas, rejeitado, crucificado, morto e ressuscitado. Esta é também a festa do grande Corpo de Cristo que é a Humanidade inteira. Corpo real de Cristo são especialmente todos os que sofrem com Ele no mundo, os enfermos e famintos, os rejeitados e encarcerados, os pobres e excluídos… Eles são a humanidade ferida no Corpo do Filho de Deus.

Corpo de Cristo é também o universo inteiro, criado por Deus para que nele se encarnasse e habitasse seu Filho. Assim Jesus, na Ceia, ao tomar o pão e o vinho em suas mãos, abraça os bilhões de anos de evolução e chama-os de seu Corpo e de seu Sangue. Cada cristão, ao fazer “memória” do Corpo de Jesus, entra em comunhão com todas as energias da Criação.

Corpo de Cristo que continua sendo o Pão, fruto da terra e do trabalho dos homens e mulheres, todo pão que alimenta e é compartilhado, em fraternidade, a serviço dos que tem fome.

“Corpus Christi” também nos motiva a perguntar: Como viveu Jesus, em sua corporalidade, a relação com o Pai, com os outros e com a natureza? E como nós somos convidados a viver nossa corporalidade?

Jesus não compactuou com a visão dualista do ser humano (corpo e alma). Para Ele, tudo era sacramento, epifania de Deus, revelação do Reino, história de salvação…

Jesus escandalizou a muitos proclamando que o “puro” ou “impuro”, não está fora, em ritos e prescrições. Não são impuros os enfermos, as mulheres menstruadas, os leprosos, as prostitutas…; a “pureza” está no coração que nos permite um olhar límpido, não possessivo, egoísta, invejoso ou violento…

Jesus levou muito a sério a questão do corpo, o seu e o das pessoas que encontrou ao longo de sua vida. Cuidou do seu descanso e o daqueles que com Ele compartilhavam o mesmo caminho; deixou-se acariciar e ungir sua cabeça e seus pés com perfumes valiosíssimos por algumas mulheres, algumas delas mal-vistas pelos rótulos preconceituosos que os varões lhe impunham, agradecendo esse gesto fruto de um amor sem cálculos; curou corpos atrofiados pela doença e fragilizados pela exploração… Os Evangelhos nos situam Jesus no nível da corporalidade próxima: é Ele que sabe olhar, tocar, sustentar, acariciar…

Se fixarmos nossa atenção em Jesus na última Ceia, descobriremos que suas palavras (“isto é o meu corpo”) e seus gestos (partir e repartir o pão) constituem a essência afetiva e social (de amor e justiça) do cristianismo, a verdade central do Evangelho.

Eucaristia é “Corpo” e é corpo doado e partilhado, não pura intimidade de pensamento, nem desejo separado da vida. A Eucaristia é Corpo feito de amor expansivo e oblativo, que se expressa no trabalho da terra, na comunhão do pão e do vinho, no respeito mútuo frente o valor sagrado da vida, no meio do mundo, nas casas de todos… Não são necessários grandes templos e nem suntuosas procissões para celebrar a festo do Corpo de Deus; basta a vida que se faz doação e partilha, no amor, como Jesus fez.

Diante do Corpo de Cristo, nosso corpo se plenifica na comunhão com outros corpos, com Deus e com o corpo da natureza. Nosso humilde corpo é parte da Criação inteira e nosso bem-estar faz sorrir a natureza.

Aqui precisamos encontrar a justa proximidade para nos relacionar com o corpo e estabelecer um vínculo sadio com ele. Afinal, nossas maneiras de nos relacionar estão configuradas por ele. Não há experiência de amor, e por isso não há experiência de Deus e dos outros, que não ocorra em nosso corpo.

O nosso corpo nos pede espaço, tempo, atenção, alimento e, sobretudo, nos pede descanso e bem-estar, inspiração e contemplação… O corpo não é só a unidade de nossos membros, mas a presença de nossa pessoa; por ele estamos e somos.

O corpo é o companheiro inseparável de nosso caminho. É preciso senti-lo, percebê-lo, escutá-lo. Mas é preciso ir mais longe: podemos afirmar que o corpo se transforma em caixa de ressonância da “voz de Deus” que nos previne contra caminhos equivocados e nos orienta para uma vida natural e plena.

O corpo é “lugar” teológico, lugar da manifestação de Deus; neste sentido é morada do divino, habitação do Espírito, enquanto participa, pensa, sente, deseja, decide…

Quem não escuta nem percebe seu corpo não pode compreender o sentido da vida, do amor, das relações… pois cairá no narcisismo de seu próprio ego.

Não é possível viver feliz sem relações amistosas e próximas com o corpo, para poder entendê-lo e expressar-se adequadamente com ele. Para conhecer-se é necessário acolher o corpo, querer o corpo, observar o corpo, olhar para dentro do próprio corpo, com atitude reverente.

Minha própria casa é meu corpo; o templo onde Deus se revela a mim. Só eu posso habitar e possuir meu corpo. Eu me identifico com meu corpo, sem o qual não posso viver. Deus, com seu Espírito, anima meu corpo; mas não pode habitar em mim a graça de Deus sem a colaboração e a abertura de meu corpo.

Nosso corpo constitui nossa presença no mundo; a acolhida do próprio corpo nos projeta para uma relação sadia com o corpo do outro; é o cuidado do corpo do outro que determina nossa relação com Deus (Mt. 25,31-46). O corpo do ferido, do faminto, do preso… tornam-se “territórios sagrados” onde crescemos e nos humanizamos; são os “lugares” nos quais Deus revela seu rosto compassivo.

O corpo é um documento histórico: há corpo burguês e corpo proletário, corpo de cidade e corpo de roça; há corpos explorados e corpos que são só força de trabalho; corpos que são modelos anatômicos; os “corpos empobrecidos” gritam a Deus por justiça, por alimento, por saúde e por novas relações entre os humanos e o cosmos, gritam a Deus por viver.

O corpo desrespeitado, expropriado e dominado de muitas pessoas, clama a liberdade, a paz, a vida. O corpo é lugar de êxtase e de opressão, de amor e de ódio, lugar do Reino, lugar de ressurreição.

O corpo é espaço de salvação, de justiça, de solidariedade, de acolhida, é lugar da experiência de Deus, da celebração, da festa, da entrega… Celebrar “Corpus Christi” é “cristificar” nossos corpos.

Corpo de Cristo

Olhos inquietos por verem tudo. Ouvidos atentos aos lamentos, aos gritos, aos chamados.
Língua disposta a falar verdade, paixão, justiça…
Cabeça que pensa, para encontrar respostas e adivinhar caminhos, para romper noites com brilhos novos.
Mãos gastas de tanto servir, de tanto abraçar, de tanto acolher, de tanto repartir pão, promessa e lar.
Entranhas de misericordiosas para chorar as vidas golpeadas e celebrar as alegrias.
Os pés em marcha em direção a terras abertas e a lugares de encontro.
Cicatrizes que falam de lutas, de feridas, de entregas, de amor, de ressurreição.
Corpo de Cristo… Corpo nosso. (José María Olaizola, SJ)

“Tomai, Senhor, e recebei”, toda minha corporalidade, com suas pulsões, seus limites e sua energia profunda. Que não fique nada em mim onde Tu não entres. Nenhum quarto escuro nem fechado que não seja invadido por Ti”.

Publicado pelo Instituto Humanitas.

Nenhum produto no carrinho.