As placas de “não me representam” tomaram conta das ruas por todo o Brasil chegando, inclusive, a fazer a presidenta Dilma Rousseff chamar uma rede nacional para se posicionar e procurar dar resposta às ruas. Em um dos cinco pontos levantados, a presidenta anunciou a convocação da criação de um plebiscito popular para uma Constituinte exclusiva do sistema político.
Resumindo, o governo faria uma consulta em que questionaria a população de seu desejo de eleger um Congresso exclusivamente para traçar um novo sistema político no Brasil. Horas depois, deputados, ministros e até o vice-presidente da República jogavam água fria na ideia da presidenta.
Acontece que a sociedade aproveitou o espaço aberto na discussão para botar seu bloco na rua. Cerca de 400 entidades entre movimentos, organizações, partidos e sindicatos lançaram a campanha do “Plebiscito Popular pela Constituinte Exclusiva”, que está mobilizando todo o país.
O Plebiscito pela Constituinte Exclusiva vai às ruas fazer a coleta de votos em todo o Brasil na chamada “Semana da pátria”, a partir de 1º de setembro e termina dia 7, dia da Independência. As urnas coletarão os votos com a resposta à pergunta: “Você é a favor de uma constituinte exclusiva e soberana para o sistema política?”. Sem a pretensão de se tornar alguma lei de fato, os 10 milhões de “sim” que a campanha pretende captar quer pressionar o Congresso Nacional e os políticos para a vontade da população de mudanças estruturais.
“Um Plebiscito Popular não tem valor legal, mas tem força política. A atual Constituição diz que somente o Congresso Nacional, com deputados e senadores, podem aprovar um Plebiscito Legal. Claro que jamais farão isso sem pressão popular”, afirma o advogado Ricardo Gebrim, da Consulta Popular. Segundo ele, a maioria dos parlamentares não quer acabar com as regras privilegiadas que os elegeram.
Para Gebrim, os plebiscitos populares geram conquistas também. “Em 2002, quando queriam que o Brasil assinasse um acordo horrível com os Estados Unidos e o então presidente Fernando Henrique queria ceder o Território de Alcântara no Maranhão para virar uma base militar norte-americana, 10 milhões de brasileiros foram às urnas do Plebiscito Popular e tiveram força social para mudar essas propostas”, explicou.
O cientista político e professor da USP Andre Singer vê com bons olhos a iniciativa dos movimentos pautar a agenda da reforma política no Brasil e considera importante a pressão da sociedade para que aconteçam mudanças estruturais na democracia.
“Esse movimento é uma das novidades mais interessantes desse último período no país, pois ele aponta na direção de uma transformação necessária e positiva. A democracia está sempre em movimento, não é uma obra acabada, ela pode sofrer pressões para ser colonizada pelo capital, mas também pode ser reapropriada pela própria população. Acredito que o movimento vai nessa segunda direção”, elogiou.
A falta de representatividade
O desinteresse na política é o que mais preocupa tanto ativistas quanto cientistas políticos. O poeta e membro do coletivo Perifatividade Ruivo Lopes alerta que a representatividade de sociedade civil na política ainda é muito nebulosa e acaba afastando boas parcelas dos cidadãos, como a juventude.
“A política nacional hoje não é atraente para a juventude que não se vê representada por esse processo viciado. Ela está pedindo protagonismo, mas sem a necessidade de assumir vínculos com a política tradicional. Ela quer criar seus próprios processos políticos nas ruas, coletivos e movimentos e a entrada em cena dessa juventude é urgente”, frisou.
O fenômeno do desinteresse na política, de acordo com Andre Singer, não ocorre somente no Brasil. Ele considera também vital um processo de democratização da democracia para que essa tendência se reverta.
“A sociedade tem que tentar se mexer para encontrar um modelo que faça esse movimento de democratizar a democracia. No contrário, vai acontecer aquilo que muitos estudiosos já observam em diversos países do mundo, em que há um esvaziamento da democracia, uma percepção por parte dos eleitores que a política não tem nada a ver com ele, é uma instância que funciona descolada das aspirações da própria sociedade e com isso você acaba por esvaziar o próprio sentido da democracia”, explicou
O financiamento público de campanha
As campanhas no Brasil ficam mais caras a cada eleição. Em 2014, de acordo com as informações cedidas pelas campanhas dos candidatos ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os gastos podem chegar perto de R$ 1 bilhão somente no primeiro turno e ultrapassar essa marca no segundo.
Também segundo a primeira rodada de contas prestadas ao TSE, somente três empresas: AMBEV, JBS e OAS doaram 65% de todo o dinheiro para as campanhas presidenciais. A campanha de reeleição de Dilma Rousseff declarou que toda a receita da primeira rodada foi oriunda de doações de empresas.
Andre Singer critica o modelo atual de financiamento, pois, na sua visão, ele desequilibra a democracia para o lado do dinheiro e das grandes empresas. “Nessa realidade de eleições cada vez mais caras e sendo sustentadas pelas empresas, você entra numa condição em que o capital tem muita influência no processo democrático e o cidadão acaba tendo cada vez menos”, analisou.
A proibição da doação de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais foi alvo de uma ADIN (Ação Direta Institucional) da Ordem dos Advogados do Brasil, que está parada no Supremo Tribunal Federal. Dos 11 ministros da casa, seis já haviam se posicionado a favor da proibição quando Gilmar Mendes pediu vistas do processo e ainda não o devolveu ao plenário.
O professor é a favor do financiamento exclusivamente de pessoas físicas e de um limite de gastos baixo para as campanhas, excluindo toda a “parafernália cinematográfica” e focando mais em programas simples centrados nas propostas.
Dificuldades
Alguns analistas criticam a alternativa de proibição do financiamento privado de campanha com o argumento de que ao invés de ajudar nos controles das doações, possam piorar ainda mais o sistema.
Um exemplo seria que uma empresa ou organização pudesse fazer pagamentos aos funcionários e integrantes para que sejam repassados às campanhas.
Singer acredita que esse não é um argumento trivial, mas analisa que a sociedade mobilizada poderá fazer o papel de fiscalizadora de qualquer ilegalidade.
“Eu reconheço que mudar regras não é simples e que a gente precisa ter uma postura cautelosa. Mas é preciso convir que a sociedade tem que se mexer e tentar essas mudanças na direção daquilo que lhe interessa. A maior garantia de que as novas regras poderão funcionar é se a sociedade estiver mobilizada para fazer o papel de fiscalizadora”, explicou
Desigualdade e representação política
O Brasil é o país com mais negros fora da África. As mulheres já representam mais da metade da população brasileira e, consequentemente, mais da metade dos votos. Porém, a representação dessas duas parcelas da sociedade brasileira no Congresso Nacional está longe de ser a ideal.
A participação das mulheres na Câmara dos Deputados se restringe a 45 dos 513 eleitos, ou 9% do total. No Senado, dos 81 senadores, somente oito são mulheres (10%).
Em relação aos negros, a correlação é ainda pior. Somente 43 deputados e dois senadores se autodeclaram negros. Enquanto isso, 273 dos parlamentares eleitos em 2010 se declararam empresários, 160 estão na bancada ruralista e 66, na banca evangélica. A correção dessas injustiças é um ponto central da Constituinte exclusiva.
“Cabe ao Estado brasileiro reconhecer a desigualdade de condições sociais e de representação política entre brancos e não brancos e a necessidade de mudanças no sistema político, criando a possibilidade de alcançarmos a paridade entre negros e brancos e entre mulheres e homens, para a efetivação de uma sociedade verdadeiramente democrática e cidadã”, afirmou Flávio Jorge dirigente da SOWETO Organização Negra.
Maria Julia Monteiro, militante da Marcha Mundial das Mulheres, destaca que somente com uma ampliação do processo democrático no Brasil, com a criação de novos mecanismos populares de participação popular, é possível fazer avançar o número de mulheres e negros em cargos políticos.
“Com a Constituinte conseguiremos discutir um novo sistema político, que é essencial para aprofundarmos a democracia brasileira. Faltam mecanismos de participação popular, possibilidade de fazer avançar candidaturas populares aprofundar a participação das mulheres na política”, afirma Maria Julia.
Segundo ela, historicamente “fomos relegadas ao espaço privado, então há grandes empecilhos para a participação política das mulheres, para nossa inserção no espaço público. Com a Constituinte, conseguiremos pensar novas regras para o jogo da política, que possibilitarão uma radicalização da democracia brasileira”, analisou.
Conservadorismo
Outro ponto que atinge em cheio os interesses das mulheres e dos negros no processo político hoje em dia é o aumento do conservadorismo na sociedade e, como reflexo, no Congresso Nacional. Temas sensíveis como o da lei anti-homofobia, o direito ao aborto e as várias tentativas de se diminuir a maioridade penal no Brasil.
Maria Julia vê com preocupação os avanços de que ela chama de “direita antipopular” que vem avançando contra direitos das mulheres, mas também se posiciona contra qualquer iniciativa que aumente a participação popular na sociedade.
“Temos visto com preocupação um aumento desse conservadorismo escancaradamente conservador, que é contra o direito da população LGBT, da população negra, e das mulheres”, afirma.
Segundo ela, essa direita, extremamente antipopular, tem aparecido mais e conseguido mais espaço na sociedade. Ele é contra qualquer tipo de participação popular, qualquer tipo de direitos a mais que possam ser conquistados pela população.
Para ambos, a mídia alimenta muito essa ascensão conservadora por meio de programas religiosos e noticiários sensacionalistas que “são incorporados pelo senso comum”, de acordo com Flavio Jorge. Maria Julia explica a importância dos movimentos sociais serem o contraponto desse processo, ganhando um tamanho maior no debate.
“Uma das principais tarefas dos movimentos organizados hoje é estimular a organização do povo, estimular o debate político, o debate crítico, para conseguir driblar a grande mídia, que joga lenha na fogueira desse conservadorismo”, argumenta.
Para ela, é preciso realizar trabalho de base, organizar o povo, porque se os movimentos populares não fizerem isso, quem o fará serão os setores conservadores, pautando questões como a maior criminalização do aborto e diminuição da maioridade penal.