Em várias regiões do Brasil, a expectativa do Carnaval é a de uma festa de liberdade e confraternização, mesmo se, cada vez mais, a sociedade do consumo é dominada pelo comércio de drogas, bebidas e exploração humana. Tradicionalmente, comunidades religiosas criam alternativas espiritualistas para preencher os dias de Carnaval. Ao contrário, grupos de tradição afro-descendente organizam blocos de Afoxé. Participam do Carnaval na comunhão do Espírito. Isso é importante e positivo porque a festa é uma dimensão fundamental da fé.
Quem ama louva e quem louva festeja. Uma sociedade massificante faz espetáculos. Uma comunidade faz festa. No espetáculo, espectadores pagantes apreciam um show. Mesmo se interagem, continuam sendo platéia. Na festa, ao contrário, todos são atores e protagonistas. A festa cria envolvimento afetuoso e revela que cada um depende de todos, na construção de um corpo comum. Por isso, a verdadeira festa, mesmo se não tiver nada de explicitamente religioso, é profundamente espiritual.
Alguém já comparou um desfile de escolas de samba ou de bloco de carnaval de rua com uma grande liturgia. É claro que o atual desfile carnavalesco está organizado como espetáculo. Nele, há elementos negativos como o espírito de competição, uma exploração do corpo humano como objeto de comércio, além da eventualidade de drogas, abuso de bebidas e até violência. Mas, se até em celebrações religiosas no templo, os profetas bíblicos denunciaram o risco do exibicionismo dos sacerdotes, a hipocrisia de fingir santidade e a pouca relação entre culto e justiça, não é de estranhar que em uma festa considerada mundana, tenhamos de lutar contra elementos negativos.
Em um mundo que favorece o desamor e provoca tantos casos de depressão, é urgente retomar o verdadeiro espírito da festa. Roger Schutz, fundador e prior da comunidade ecumênica de Taizé, se perguntava: "Se o espírito da festa desaparecer do mundo, como sobreviverão as comunidades?". Há quem ligue a fé e a espiritualidade com uma excessiva seriedade e ar de tristeza. No velho catolicismo ibérico, predominam imagens do Senhor Jesus, amarrado no tronco de torturas e coroado de espinhos. A figura de Maria é principalmente a de Nossa Senhora das Dores. E os santos parecem todos grandes sofredores.
Não se trata de negar que, muitas vezes, esta vida é mesmo um vale de lágrimas. Mas, temos de encontrar a forma de ser felizes. Jesus disse que veio ao mundo para que a nossa alegria seja completa (Cf. Jo 16 20 ss). Conforme o evangelho de Mateus, sua primeira palavra pública foi um convite a sermos todos felizes, bem-aventurados. Na tradição cristã, uma abadessa beneditina medieval, Santa Mectildes nomeava Jesus como seu "companheiro de brincadeiras". E até hoje, no Catolicismo popular, existem grupos de folia nos quais os foliões não são os do Carnaval de agora, mas os devotos do Divino ou dos Santos Reis.
A festa pode ter também uma dimensão profética de antecipar o dia da vitória final contra todos os elementos negativos do mundo. No começo dos anos 70, Cacá Diegues fez um filme chamado "Quando o Carnaval chegar". Os atores eram, entre outros, Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão. Em plena ditadura militar, o filme tomava o Carnaval como símbolo da festa da libertação do povo e da vitória contra a censura e as repressões. Até hoje, muita gente lembra disso ao cantar a melodia do Chico: "Quem me vê assim, parado, distante, parece que eu nem sei sambar. Tou me guardando pra quando o Carnaval chegar".
A ONU consagrou 2012 como o ano da valorização das culturas africanas e do reconhecimento da dignidade das pessoas e comunidades afro-descendentes. Neste último mês, no norte da África, povos desarmados e principalmente jovens, através da internet, conseguiram derrubar regimes ditatoriais fortemente armados e violentos. Ao menos na Líbia, a repressão foi muito violenta e muita gente está sendo morta. Mas, da parte do povo, há uma insistência nas manifestações pacíficas, mas radicais: as pessoas só voltarão para casa quando se sentirem representadas por governos democráticos e respeitadores da dignidade humana. Também no Brasil, as comunidades afro-descendentes têm se organizado e conquistado alguns direitos.
Quem sabe, neste Carnaval, possamos recuperar destas sabedorias tradicionais a forma de fazer festa como celebração da vida e acolher o outro como companheiro de caminhada para o grande Carnaval do reinado divino no mundo.
Marcelo Barros é monge beneditino e colaborador do CEBI. Entre os seus vários livros estão: A dança do novo tempo, Parábolas do projeto divino no mundo, O Espírito vem pelas águas e A vida se torna Aliança.