Há quem pense que o Brasil de hoje, do modo como está organizado e com a sociedade dividida em polaridades opostas, não está para Carnaval. A desigualdade social aumenta de forma escandalosa. A violência toma conta de nossas cidades. A maioria da classe política se comporta de forma insensata e oportunista. Apesar disso tudo, nesses dias, em todo o Brasil, já se respira o clima de Carnaval. No Rio de Janeiro, Olinda, Salvador e outras cidades tradicionais, os blocos estão nas ruas e as pessoas superam as dores e angústias do cotidiano através da dança, das brincadeiras e da alegria do Carnaval.
Alguns grupos religiosos condenam o que consideram mundanismo. Julgam o Carnaval como produto do diabo. Trata-se de um julgamento moral que olha a vida de forma dualista, opõe o material ao espiritual, o corpo ao espírito e faz um julgamento moralista do clima de liberdade que reina em muitos ambientes do Carnaval. O senso crítico é importante, mas ele nos leva a olhar não apenas os frutos da árvore, mas a raiz. É preciso compreender que, por trás de toda essa imensa iniciativa do Carnaval há enormes estruturas econômicas que estão por trás e que favorecem empresas e grupos sociais. O Capitalismo intenta transformar a vida e as relações humanas em mercadoria e explora um erotismo meramente comercial. Fomenta o uso exagerado de bebidas e mesmo de drogas. Isso cria um circulo vicioso com a violência urbana que explode em alguns fenômenos de massa não bem canalizados. No entanto, apesar de todos esses problemas, toda festa, mesmo a mais aparentemente mundana, pelo fato de congregar as pessoas em uma expressão de alegria já é positiva. Tem uma dimensão nobre e, podemos dizer: espiritual.
Em geral, as culturas antigas valorizam a festa como sinal e antecipação do pleno e definitivo encontro com a Divindade. No evangelho, Jesus afirmou que o reinado divino vem ao mundo, qual música deliciosa que convida todos a dançarem. Ele se queixa de sua geração que parece com pessoas que, mesmo ao som da música, não reagem e ficam indiferentes (Lc 7, 31- 32). Ninguém deveria ficar apático diante dos sinais do amor e da comunhão humana que tornam a vida, mesmo sofrida, festa de alegria, inspirada pelo Espírito. Jesus começou a anunciar o reinado divino no mundo, transformando água em vinho simplesmente para que não faltasse alegria em uma festa de casamento (Jo 2).
As pessoas e comunidades marcam a vida pela cadência das festas. Cada ano, o aniversário natalício recorda o dom da vida. Conquistas importantes, como conclusão de um curso, obtenção de novo trabalho e casamentos são celebrados com festas. Todo país tem festas cívicas e cada religião, festividades litúrgicas. O que caracteriza a festa é a liberdade de brincar, o direito de subverter a rotina e de expressar alegria e comunhão, através de uma comida gostosa, a música contagiante e a dança que unifica corpo e espírito.
A fé faz parte da vida e da cultura do povo. Por isso, é normal que nos símbolos escolhidos como temas de desfile carnavalesco e mesmo nas letras dos sambas-enredos de escolas de samba, apareçam composições que tragam mensagens de caráter religioso. Neste 2025, várias Escolas de Samba do Rio de Janeiro, assim como blocos importantes de outras cidades tomam como tema elementos das culturas religiosas afrodescendentes, em nossos dias, ainda discriminadas, injustamente atacadas e vítimas de racismo religioso.
Nos anos 70, Chico Buarque compôs a melodia para o filme “Quando o Carnaval chegar”. Essa comédia musical de Cacá Diegues tomava o Carnaval como parábola da festa da libertação. Hoje, vivemos uma democracia formal, mas ainda falta muito para alcançarmos igualdade social e uma justiça que signifique verdadeira libertação para todo o povo. Por isso, continua válida a esperança proposta na música que, no filme, Chico canta junto com Maria Bethânia e Nara Leão: “Quem me vê assim, tão parado e distante, parece que eu nem sei sambar. Tou me guardando pra quando o Carnaval chegar”.
Nesses Carnavais que passam, é importante que não deixemos de esperar e nos preparar para o Carnaval definitivo, mais profundo e transformador da vida.
Irmão Marcelo Barros