Reflexão do Evangelho

A Confissão de Fé e a Cruz no Evangelho de Marcos: Um Chamado ao Discipulado Autêntico – Marcos 8,27-38

Lec. Comum: Marcos 8,27-38
Lec. ICAR: Marcos 8,27-35

Amadas Leitoras e amados leitores,

O texto proposto para a nossa reflexão neste dia encontra-se no coração do Evangelho de Marcos. É uma perícope que pulsa e revela no meio de tantos argumentos simbólicos o conflito eminente vivenciado pelo discipulado das comunidades marcanas.

Podemos organizar o nosso texto em três momentos que tem como características cenas marcantes:

1- Mc 8,27-30 – tem como tema central “a confissão”. Nela está contida uma crise confessional.

2- Mc 8,31-33 – a revelação da crise confessional. A boca que confessa é a mesma identificada como “satanás ou demônio”.

3- Mc 8,34-38 – o significado da confissão. Confessar é assumir a cruz e deixar-se ser invadido por este mistério. (“Maldito seja todo aquele que for suspenso no madeiro. ” Gl 3,13)

Nós leitores, não podemos esquecer que é Marcos quem inaugura um novo gênero literário chamado ‘evangelho’ (“Princípio do Evangelho de Jesus Cristo. Filho de Deus”. Mc 1,1) em oposição ao evangelho de Augustus, anunciado e difundido pelo império Romano.

Ademais, também não podemos esquecer que o evangelho de Marcos é fruto da segunda geração do discipulado, geração marcada por grandes crises.

Num contexto mais amplo e abrangente. Podemos lembrar que a região onde o texto de Marcos nasce foi dominada pelos romanos desde o ano 63 a.C. Esse império impunha uma política violenta e sangrenta denominada “Pax Romana” que não tolerava quaisquer formas de insubordinação. A menor resistência à dominação do império gerava uma grande onda de massacres executados pela “legião” romana. (legião = exército romano).

É necessário ressaltar que era imposta à região da Palestina uma alta carga tributária, a população sofria sob o jugo de impostos abusivos não só por parte do Império Romano mas também por parte do templo de Jerusalém

Também é importante tomarmos conhecimento de que no período histórico em que o Evangelho de Marcos foi escrito era muito difícil e cara a escrita, era necessário aproveitar cada pedaço de papiro, resumindo bem o que pretendia escrever.

No ano de 64 d.eC., o imperador Nero iniciou uma grande perseguição aos cristãos. Uma das consequências dessa perseguição foi o martírio dos apóstolos Pedro e Paulo. Esse momento deixou marcas profundas nas comunidades seguidoras, batizados e batizadas vivenciaram a experiência dos que renegaram a fé e que, após determinado tempo, manifestaram o desejo e a determinação de retornarem à comunidade. Queriam recuperar a visão – ver de novo.

Todos esses acontecimentos somam-se ao clima de uma revolta política instaurada pelo grupo dos zelotes. Havia quase que um frenesi social provocado pelos grupos messiânicos que viviam a expectativa “da chegada do messias” que iria libertar o povo da opressão do Império Romano. Isso tudo provocava muitas dúvidas no interior da comunidade. Os seguidores e as seguidoras se questionavam se deveriam ou não participar da luta contra o Império Romano. Também as comunidades viviam uma incerteza: seria mesmo Jesus o Messias?

A morte da primeira geração deixou um vazio de lideranças que deveria ser preenchido; era necessário que outras lideranças surgissem e continuassem o trabalho missionário iniciado pelas primeiras e primeiros. Não havia um manual de ‘como ser liderança’ ou de como ‘exercer o trabalho missionário’; essa ausência causava disputas acirradas entre os membros das comunidades.

Uma questão muito sensível e importante para Marcos foi a penetração de uma mentalidade triunfalista na vida da comunidade. Essa questão será exaustivamente tratada em seu evangelho, pois a comunidade estava vivenciando um profundo esquecimento e afastamento da Cruz.

Podemos resumir em algumas palavras o contexto sócio histórico do Evangelho de Marcos: massacres, fome, guerras, aflições, pobreza e muito … muito medo.

Querida gente do século XXI, discípulas e discípulos de Jesus de Nazaré a pergunta fundante que está no centro de nossa perícope é: “quem dizeis que EU SOU”? É a interpelação itinerante que deve estar presente no caminho do discipulado.

O evangelho de Marcos é composto por dezesseis capítulos, o início da sua obra traz a seguinte marca: “boa notícia de Jesus Cristo”. Somos aguçados a entrar na dinâmica da leitura do texto para entender que boa notícia é essa, porém o que, talvez, não esperávamos é que ao chegar na metade dessa narrativa fossemos deparar com a árdua pergunta: “quem dizeis que EU SOU”?

Só é possível avançar nesta dinâmica se essa pergunta for identidade na itinerância do discipulado. Não é possível confessar “Tu és O Cristo” e continuar sendo subserviente ao evangelho apregoado pelos ‘Augustus” e o seu império.

Não é possível confessar seguidor e seguidora de Jesus de Nazaré e continuar prestando todos os cultos do império do capital, da ganância, da destruição, da violência, da morte… Na comunidade seguidora esse comportamento leva a seguinte rejeição: “Afasta-te de mim, Satanás”.

Não é possível confessar “Tu és O Cristo” e se permitir ser seduzido e cooptado por uma mentalidade triunfalista na vida da comunidade. Não é possível confessar “Tu és O Cristo” e admitir que o poder de Jesus de Nazaré concorre com o poder do Imperador e do Império Romano.

Em nossas realidades, não é possível confessar “Tu és O Cristo” e construir nossas expressões de fé em um culto retribucionista que nos fará alcançar todas as benesses difusas pelo império denominado ‘mercado’.

A cruz no evangelho de Marcos não é um amuleto, tampouco uma alienação. Então, o que é a cruz para comunidades marcanas? Quem tem esta resposta? O discípulo e a discípula que discerniram, vivenciaram e assumiram o seguinte compromisso: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. (Mc 8,34)

Querida gente,

O texto proposto hoje para nossa liturgia nos ajuda a repensar a nossa permanente itinerância no seguimento de Jesus de Nazaré. Convida o leitor e a leitora entrar no ambiente mais profundo do nosso seguimento e se desafiar a encontrar nele o eco da “boa nova’ de Jesus de Nazaré.

Não é mais possível a boca confessar a fé em Jesus e ao mesmo tempo se acomodar às inúmeras justificativas de morte provocadas pelo falso discurso de ‘Deus’. Não é mais possível dizer que vivemos em um país predominantemente cristão sendo que as pessoas estão morrendo pela perseguição de grupos extremistas, abusivos e violentos. Não é mais possível justificar tanta desigualdade em nome de Deus. Não é mais possível proclamar a fé no ‘Cristo’ apartado do ‘Nazareno’. Não é mais possível cultuar o poder, do mercado, do dinheiro, da indiferença transvestido de boa nova de Jesus Cristo.

 

Niterói 11 de Setembro de 2024.

Barroco de Oliveira – CEBI/RJ

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