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A felicidade por decreto: o medievalismo do Estatuto da Família

A felicidade por decreto: o medievalismo do Estatuto da Família

Não podemos aceitar mais um retrocesso: ou o Estado brasileiro se seculariza de fato e de direito ou sucumbe às trevas da intolerância religiosa

Nosso filho estuda numa escola em que uma quantidade não desprezível de colegas é fruto de uniões que não existem mais. Uns dias da semana o pai busca, em outros a tarefa cabe à mãe. O pai de um destes colegas mora numa esquina próxima da nossa casa e, às vezes, seguimos juntos ao voltarmos da escola. Nosso filho tem consciência de que os pais do colega não moram mais juntos e demonstra, de vez em quando, preocupação com o que pode acontecer caso eu e sua mãe venhamos a nos separar. Eu lhe explico pacientemente que as pessoas, homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, se conhecem, se gostam e moram juntas, podendo nascer (ou ser adotado) daí um filho ou uma filha. Enquanto houver um determinado tipo de amor, o casal permanece junto; se o casal passar a se gostar, ou a não se gostar, de uma maneira que não significa mais querer dormir na mesma casa, na mesma cama, ele se separa. O que não significa, e isto eu deixo bem claro para ele, que ambos deixem de ser pai e mãe dele, que ambos deixem de amá-lo, mas agora cada um morando em locais separados. Nosso filho nunca me perguntou sobre casal de pais formados por indivíduos do mesmo sexo, embora já saiba, porque dissemos a ele, que este arranjo é possível e normal.

Eis que o Estado brasileiro decidiu arvorar-se no direito de decidir quais arranjos familiares são dignos e quais são indignos para a criação de indivíduos psicologicamente saudáveis. A ingerência estatal em domínio eminentemente privado, uma vez que a felicidade não pode ser construída baixo decreto presidencial, é flagrante na discussão do chamado Estatuto da Família, projeto de lei proposto pelo deputado federal Anderson Ferreira, do Partido Republicano. Pode-se dizer, até, que o projeto não começa de todo mal, em seu artigo 1º esclarecendo que o Estatuto dispõe “sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas para a valorização e apoiamento da entidade familiar”, sendo obrigação do Estado, da sociedade e do Poder Público, de acordo com o artigo 3º, “assegurar à entidade familiar a efetivação do direito à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária”. O banho de água fria vem, entretanto, no artigo 2º, em que a “entidade familiar” é definida como o “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher (grifo do projeto de lei), por meio do casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

E não paramos por aí. O relator do projeto apresentou um substitutivo à proposta original, inserindo no texto um dispositivo, no mínimo, polêmico: a exigência de que as pessoas que queiram adotar sejam casadas civilmente ou mantenham união estável, constituída nos termos do artigo 226 da Constituição Federal. Como o texto constitucional reconhece explicitamente apenas a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, na prática o substitutivo proíbe a adoção de crianças por casais homossexuais. Para o relator do projeto, “a concessão pelos tribunais da adoção homoafetiva desconsidera o fato de que o tema de pares homossexuais formando famílias ainda não está pacificado na sociedade”, considerando que “trazer a criança para o meio de um furacão é no mínimo desprezo à proteção dos direitos desse menor”. O relator contraria, portanto, decisão do Supremo Tribunal Federal que já reconheceu, em 2011, a união estável homoafetiva como entidade familiar. O STF considerou a centralidade da felicidade como princípio fundamental na construção da estrutura familiar, seja ela formada por indivíduos de sexos distintos ou não. Nas sábias palavras do ministro Luiz Fux,

“Onde há sociedade, há o direito. Se a sociedade evolui, o direito evolui. Os homoafetivos vieram aqui pleitear uma equiparação, que fossem reconhecidos à luz da comunhão que têm e acima de tudo porque querem erigir um projeto de vida. A Suprema Corte concederá aos homoafetivos mais que um projeto de vida, um projeto de felicidade.”

Em recente entrevista à revista Época, o deputado Anderson Ferreira justifica a proposta do projeto de lei porque,

“Uma imensa parcela da sociedade brasileira é conservadora. O retrato disso está no Congresso. O atual parlamento passou a ter uma bancada conservadora maior. A polêmica enriquece o debate. Não adianta partir para agressões verbais, protestos em praça pública ou nos cultos evangélicos, como já foi visto recentemente.”

O deputado esquece que a separação entre Estado e religião foi estabelecida, ao menos formalmente, na Constituição Federal de 1891. Ademais, numa sociedade democrática o Estado deve zelar pelo respeito a todos os cidadãos, sejam eles parte de uma “maioria” ou de uma “minoria”. Talvez seja mais apropriado afirmar que, numa democracia, o essencial é proteger os direitos desta (s) minoria (s) exatamente por não se enquadrarem naquilo que o deputado qualifica de “padrão”, ou seja, no caso em análise, a união heterossexual. Já dizia Nelson Rodrigues que toda unanimidade é burra. O padrão não existe no vácuo, é construído socialmente e pode ser questionado, não descansa em berço esplêndido, não é sagrado. O desvio, por sua vez, não é essencialmente um erro, visto que só existe a partir do padrão estabelecido. Ou seja: seguir nos trilhos do padrão não significa aderir à verdade absoluta, e é aqui que entra o poder judiciário na defesa dos direitos de quem desvia do padrão. Apenas para exemplificar: até 1888, era padrão um ser humano branco com recursos possuir outro ser humano, embora preto de pele; até o fim do regime do Apartheid, era padrão considerar crime relações sexuais entre brancos e negros; nos anos sessenta, era padrão negros sentarem-se na parte de trás do ônibus em muitas cidades norte-americanas, proibidos de misturarem-se aos brancos, “contaminando-os”; antes de 1930, era padrão mulheres não votarem no Brasil.

O Estatuto da Família é desumano por desconsiderar a enorme quantidade de crianças disponíveis para adoção, submetidas diariamente ao sofrimento psicológico do abandono afetivo e material, cujo destino poderia ser outro se as definições de felicidade e integridade moral não estivessem condicionadas a uma visão de mundo religiosa, intolerante na sua essência porque exclusiva, porque divide o mundo entre sagrado e profano, anjos e demônios, deus e diabo, céu e inferno. Parece-me um ato falho a afirmação do deputado de que “o arranjo familiar baseado no amor e no afeto é algo novo em nossa sociedade, não é o padrão”. Qual seria o tradicional padrão de arranjo familiar, então? Baseado em quê? Hipocrisia? Violência? Indiferença? Ele mesmo fez o papel de advogado do diabo, ironicamente.

Reproduzo a questão levantada pelo escritor português Eduardo Prado Coelho, citado por José Saramago nos seus Cadernos de Lanzarote: Como conciliar o princípio da crença com o princípio da tolerância? Seremos nós capazes de viver em crença, para sermos um pouco mais que coisa nenhuma, e aceitarmos a pluralidade inconciliável das crenças?

Não há conciliação. Ou o Estado brasileiro se seculariza de fato e de direito ou sucumbe às trevas da intolerância religiosa.

Texto: Marcelo Gruman (Carta Maior)

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